A Dança da Morte - Stephen King
Um livro com problemas tão grande quanto o seu número de páginas
Como escrever uma resenha sobre um livro de mais de mil páginas? Melhor ainda, como escrever uma resenha sobre um livro épico do Stephen King de mais de mil páginas? É complicado, é muito complicado, não por causa da sua história (exageradamente) extensa, mas sim pelos vários temas, alguns bastante espinhosos, que permeiam essa longa caminhada que é a leitura de Dança da Morte.
A história (dentro e fora do livro)
Publicado originalmente em 1978, A Dança da Morte começa com um vírus modificado escapando da base militar secreta dos Estados Unidos e passa a infectar várias pessoas chegando a matar 99% das pessoas em alguns capítulos; no entanto, é nesse 1% de pessoas que sobraram que a história vai focar. Dividido inicialmente em quatro núcleos que irão se juntar e aumentar ao decorrer da história (Stu; Frannie & Harold; Larry; Nick), o aprofundamento dos personagens, além dos seus conflitos pessoais que os acompanham mesmo depois do fim da sociedade e do mundo que eles conheciam, é feito de uma forma tão bem construída que é difícil de largar os capítulos dessa primeira parte pós-epidemia. No entanto, além desses personagens e seus próprios conflitos temos também um conflito muito maior do que eles próprios, um conflito que vem desde o início dos tempos: o bem contra o mal; esse conflito chega até esses personagens por meio de sonhos, o bem representado pela Mãe Abagail, uma velhinha adorável de 108 anos e que ainda faz o seu próprio biscoito, e Randall Flagg, principalmente chamado de Homem Escuro, a encarnação do próprio mal que causa arrepios só de pensar nele. Esses quatro núcleos terão seus próprios conflitos enquanto fazem sua jornada em busca de Mãe Abagail no Nebraska até a primeira parte do livro (ele é dividido em três) e é a partir daí que o leitor irá criar laços com esses personagens, afinal, lendo um livro de 1248 páginas, se você não criar laços com os personagens acredito que nem valha a pena continuar lendo.
Já indo para a história da publicação do próprio livro, já foi dito anteriormente que a primeira publicação foi feita no ano de 1978 (a história se passa em 1980), mas ele passa por duas republicações nos doze anos seguintes. Primeiro, quando King mandou o manuscrito para a editora ele teve que cortar por volta de 400 páginas pois era muito grande para ser publicado na faixa de preço que queriam colocar na época, então a sua primeira edição é uma versão reduzida da que temos atualmente. Em 1985 ele é republicado com a ano dentro do livro atualizado para o ano corrente da nova publicação, mas aí chega 1990, o ano da The Complete and Uncut Edition, a versão que temos atualmente no mercado, com o ano atualizado (novamente) para o ano corrente da publicação e com as páginas cortadas da primeira edição.
Um deslocamento no tempo
Durante a primeira parte do livro, quando o “mundo antigo” ainda está muito presente na mente dos personagens, tive um certo estranhamento com algumas partes pois por mais que a história se passasse em 1990, alguns trechos se mostram um tanto deslocados historicamente. Primeiro, em uma determinada parte é dito que os EUA assinaram o acordo de Genebra, que envolve entre outros o uso de armas químicas e biológicas, oito anos antes, no entanto esse acordo foi assinado em 1972, portanto o correto seria ele ter sido assinado dezoito anos antes. Não sei se é um erro de revisão dentro da publicação original quando ele foi passado de um ano a outro ou se é algo da tradução, mas por mais que seja um detalhe pequeno que pode passar despercebido por muita gente, é um detalhe que merece ser chamado atenção juntamente com outro detalhe: na primeira parte não é dito nada sobre tecnologias mais recentes (tendo como ponto de vista 1990), em uma parte Frannie até usa uma vitrola portátil numa época que já existiam CDs. Esse deslocamento não é algo que acontece durante o livro inteiro (a meu ver, parece que foi mais pelos primeiros 25% do livro), em uma parte é citado O Predador, filme lançado em 1987, e até mesmo o finado beeper que se tornou popular durante as décadas de 1980/90 nos EUA, mas isso acabou acarretando em um pensamento: além dessas rápidas passagens, há ainda um pano de fundo da situação dos Estados Unidos, que na época estava passando pela Guerra Fria, portanto, a história continua a mesma se o período original em que ela se passa for modificada? Doze anos não é uma quantidade de tempo muito longa para que aconteça mudanças mundiais que interfiram tanto assim em todas as sociedade, mas em hipótese alguma deve ser desconsiderado: mudanças políticas internas, surgimentos de novas tecnologias, modas que vem e vão, tudo isso não pode ser deixado de lado em um livro que precisa do país e principalmente da sua sociedade. Então, com os detalhes citados anteriormente e essa questão de contexto temporal em que o livro é escrito em mãos, foi a escolha mais acertada deslocar o livro de uma década para outra? A meu ver, não. Peguemos, por exemplo, o caso de Lois Duncan, autora de Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado. Publicado originalmente em 1973, ele é republicado em 2010 passando por pequenas atualizações, como o fato dos personagens começarem a usar telefones portáteis; além disso, um determinado personagem dentro dessa história luta em uma guerra, enquanto na publicação original era a Guerra do Vietnã, na republicação a guerra foi alterada para a do Iraque. No exemplo de Duncan, essa mudança não causa um estranhamento pois no máximo o nome de um evento histórico é citado, mas não é um foco da narrativa, diferente do caso de A Dança da Morte onde o contexto social-político-histórico é a base e o pano de fundo para o início da história.
O elefante na sala
Entrando em uma questão problemática que me incomodou bastante durante a leitura, é necessário falar sobre os personagens não-brancos. Existem muitos personagens durante toda a história, mas no núcleo principal e secundário temos somente um personagem negro: Mãe Abagail. Existe um tipo de personagem que é muito utilizado em algumas histórias, o magical negro, um personagem negro rodeado de misticismo e mistério que só está ali para servir de apoio ao protagonista branco (de forma bem resumida, mas em essência é isso); usar esse tipo de personagem, além de ser um tropo narrativo pobre e sem criatividade, é regredir uma pessoa negra para um tipo de pessoa que não se encaixa em uma sociedade moderna, tendo que viver longe do grande centro e ser ligado demais com as suas “raízes” (ou o que o autor, no geral branco, acha que são as raízes). Mãe Abagail, apesar de ser uma velhinha adorável (mesmo que republicana), é uma personagem mística e mítica, tendo uma ligação direta com Deus e que serve de “líder” para aqueles que a seguem e vão até ela (por mais que ela não opine em nada e quem comanda tudo são outros personagens). Além dela, temos pouquíssimos personagens negros dentro da narrativa, mas dois merecem destaque: um que lidera uma revolta contra militares, regredindo ele mesmo e seus asseclas a um estado bestial e selvagem; e Rato, um morador de Las Vegas (onde vive Flagg e seus seguidores) descrito como um pirata negro tão feio e repulsivo que nem mesmo Julie (uma viciada em sexo) ficaria com ele. São pontos complicados, muito complicados, e isso porque nem citei o fato de que o narrador descreve Joe, o garoto que acompanha Larry e Nadine, como tendo “olhos de chinês”. Sim. Olhos de chinês. Além das questões raciais, há também o a questão dos papéis das personagens femininas: uma velha religiosa, uma que é objeto de disputa entre dois homens, outra que precisa perder a virgindade para se ver livre; são todas questões que não sinto que eu tenho local de fala ou conhecimento o suficiente para tratar profundamente todas as problemáticas que as permeiam (fora outras personagens), mas é algo que incomoda até a mim. No entanto, por incrível que pareça, essas questões nem foram o que me deixou mais chocado. O Homem da Lata de Lixo, um personagem doido e incendiário seguidor de Flagg, vai de uma cidade até Las Vegas e possui um capítulo só para ele em que essa caminhada é narrada; no meio do caminho ele encontra um personagem muito perturbado da cabeça que também estava seguindo o mesmo caminho chamado O Garoto, com quem Lixo se junta para ir até Vegas. Então eles fazem uma parada em uma noite num pequeno hotel de estrada e é lá que acontece a cena mais desnecessária do livro: O Garoto faz com que Lixo o masturbe, ameaçando de morte caso ele não o faça, e chega até mesmo a estuprá-lo com o cano de uma arma .45; é uma cena isolada, ela não causa nenhuma mudança no personagem de Lixo, não é um acontecimento o qual o personagem retorna depois, é simplesmente uma cena jogada e que não tem a menor utilidade. Ponto. Então qual é a necessidade dessa cena para a narrativa? Não só da cena, mas também do próprio personagem d’O Garoto, ele tem um final e não causa mudança alguma em outro personagem além de Lixo e a ação de levar ele durante uma parte do caminho de Vegas.
O maniqueísmo
Como já foi dito, há um conflito maniqueísta que permeia toda a história tendo de um lado Mãe Abagail, comandada por Deus, e do outro temos um feiticeiro descrito como diabrete do Diabo (na verdade ele é comandado por outro ser, mas isso é assunto para outro livro). Na terceira parte de Dança da Morte temos um pouco da visão dos moradores de Las Vegas, conhecemos alguns personagens que se mostram não seres malévolos que buscam a destruição de Boulder, onde moram os seguidores de Mãe Abagail, assim como na segunda parte vemos que nem todos os moradores de Boulder são 100% corretos e bonzinhos. Sendo assim, uma oposição entre os cidadãos e uma relação de conflito maniqueísta entre eles cai por terra, o que não impede que a FUCKING MÃO DE DEUS caia em cima de uma bomba nuclear e destrua a cidade junto com todos os seus moradores. Não gosto de histórias baseadas no grande conflito entre o bem e o mal situado entre humanos porque prefiro pensar nas pessoas como uma grande mistura cinza ao invés de uma dualidade preta e branca, logo, tenho alguns problemas com a resolução do conflito de Dança da Morte porque além do (literalmente) deus ex machina bombástico (desculpa o trocadilho) no final, há ainda o fato de milhares de pessoas terem morrido se motivo algum.
Era mesmo necessário tantas páginas?
O tamanho do livro assusta, eu sei, mas é uma leitura que vale a pena. Mas vale mesmo a pena ler TODAS as páginas? Além do já supracitado capítulo do Homem da Lata de Lixo (o qual teve partes que eu só passei por cima), após a explosão nuclear em Vegas a história vai acompanhar a viagem de Stu e Tom de volta a Boulder, no entanto, é uma viagem detalhada. Muito detalhada. Não havia necessidade de tantas páginas (e são muitas) narrando a viagem dos dois personagens até o lar deles, no mínimo deveria ser somente a parte em que Stu está doente e Tom cuida dele com a ajuda do falecido Nick querido, mas todo o resto descrevendo os dias deles, o que eles fizeram, não tinha a menor necessidade e nem tem função depois que eles voltam até Boulder. Uma comparação que dá pra fazer com esse livro e outra obra épica é O Senhor dos Anéis: ambos são obras enormes que relatam um conflito entre o bem e o mal e é muito lembrado pelas longas e descritivas viagens. Entretanto, enquanto na obra de Tolkien temos acontecimentos e falas necessárias para o entendimento do universo criado pelo autor, no livro de King essas descrições (não só da viagem de Stu e Tom para Boulder, mas também da viagem de de Stu, Larry, Glen e Ralph até Vegas) excessivas não tem função nenhuma dentro da narrativa além de entediar o leitor.
Tirando todos os defeitos…
… é um livro bom. É uma obra grandiosa e memorável, com certeza, mas não é uma obra perfeita ou que os defeitos podem ser deixados de lado, pelo contrário, as qualidades (como a história grandiosa, a ligação que o autor cria entre o leitor e os personagens, o universo místico entre as páginas, além do próprio Randall Flagg) devem ser destacadas assim como os seus defeitos. Uma obra datada que talvez se fosse escrita mais recentemente tratasse melhor das questões problemáticas, mas que não é sem razão tão lembrada por quem a lê.
Bônus: adaptações
Temos duas adaptações de Dança da Morte para a TV em formato de minissérie. A primeira foi transmitida originalmente pela ABC em 1994, formada por quatro episódios de uma hora e meia, sendo fiel ao material original, por mais que as limitações de tecnologia e produção da época ainda estejam lá. Já a segunda adaptação foi lançada em 2020 para o Paramount+, 9 episódios de 50 minutos a uma hora de duração, essa com melhores efeitos visuais e um elenco de peso, o que não impede que ela seja ruim. A versão de 1994 conta a história assim como ela é contada no livro, fazendo poucas alterações, no entanto, é possível criar um laço com os personagens apresentados, é possível sentir empatia por eles, e boa parte desse sentimento surge pela maneira linear e cronológica que a história é narrada. Essa situação já muda na adaptação de 2020 pois a narrativa começa onde no livro já seria a metade e então ela volta até um ponto muito anterior da história para falar sobre um determinado personagem (e nesse ponto ela ainda pode voltar mais atrás para depois voltar a esse segundo ponto), não há uma ordem linear na maneira como a história é contada o que acaba prejudicando os personagens: a narrativa vai começar em um ponto em que já era para você conhecer eles e se importar com eles, tudo o que aconteceu antes é importante para que isso aconteça, mas essa maneira como escolheram contar essa história prejudicou completamente. Além disso, há um novo final para a história, final esse criado pelo próprio King, que além de ser totalmente descartável só reforça a problemática do magical negro já citada anteriormente. A adaptação nova tem a Whoopi Goldberg como Mãe Abagail e o Alexander Skarsgård como Randall Flagg e de início pode até parecer incrível ver eles nesses papéis, mas a personagem da Mãe Abagail é um completo desperdício, tanto de personagem quanto da própria atriz, o Randall foi o único personagem que de fato gostei na série inteira, todos os outros foram um porre de acompanhar (sem falar no coitado do Nick que foi esquecido no churrasco). Recomendo que fique mesmo na versão mais antiga, é mais respeitosa com a obra e com o próprio telespectador.
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