R.U.R.: Robôs Universais de Rossum (Karel Čapek) - A revolta das máquinas nunca saiu de moda
Me serve, latinha, me serve
A história se passa em um mundo onde a sociedade já convive com robôs servindo aos humanos sem receber salário ou qualquer direito que seja; eles são fabricados na Ilha Rossum onde são projetados e desenvolvidos por Fabry, Dr. Gall, Dr. Hallemeier e Alquist enquanto o gerenciamento da fábrica é papel de Harry Domin. A narrativa começa com a chegada de Helena Glory, filha do presidente dos Estados Unidos e integrante de uma liga que luta pelos direitos dos robôs, que decide visitar a fábrica Rossum para entender como os robôs são fabricados e tentar convencer Domin a dar um tratamento melhor a eles. Bom, se ela tivesse conseguido não teria história, não é mesmo?
Domin se apaixona por Helena rapidamente e ambos formam um casal. Dando um salto temporal de alguns anos, após tantos abusos por parte dos humanos e vários acontecimentos que preocupavam até a Domin, todos os robôs do mundo se unem e começam a massacrar qualquer humano que encontrem pela frente. Isolados e cercados dentro da fábrica, Helena, Harry e o grupo que projetava os robôs se desesperam com tudo o que está acontecendo e procuram uma maneira de comprar sua liberdade e sobrevivência. Não contarei o resto da história, é uma peça curta e rápida de ler, portanto continue lendo essa resenha por sua conta e risco!
Ele, robô?
Primeiramente, não posso deixar de continuar essa resenha sem explicar esse termo tão conhecido que é a palavra “robô”. “Mas poxa, Al, é preciso mesmo explicar o que é isso? Tipo, todo mundo já assistiu algo com um robô ou até mesmo já viu um robô na sua frente”. Sim meu caro amiguinho perguntador, quando se pensa em robô já nos vem à cabeça a imagem daquele autômato de metal, por vezes uma coisa quadrada e mecanizada demais, por vezes muito parecido com um humano, no entanto o que pouca gente pensa é o termo “robô” como escravo.
Originalmente, o termo “robô” vem da palavra tcheca “robota”, que significa “escravidão”, “servidão”, “trabalho forçado”; sejam na literatura ou no cinema, quando pegamos algumas obras que tratam sobre a existência de robôs no cotidiano da humanidade, eles sempre são mostrados como semi-seres fabricados para servirem a humanidade, na maioria das vezes não recebendo salário algum ou tendo direito a algo, mas poucas vezes essa situação é vista com uma ótica de escravidão. R.U.R. foi a primeira obra que li onde os robôs explicitamente são vistos como escravos sem direito algum e, levando em consideração que essa é uma das primeiras obras a tratarem de robôs, é interessante notar como esse tema não foi muito usado da maneira que Karel usou em 1920. Eu, Robô sabe bem como retratar as complexidades que a inclusão de um robô no cotidiano traz, mas eles ainda são vistos de uma maneira muito distante de algo “vivo” ou que tem paridade com um ser humano.
Outro ponto que devo explicar é como o robô de Čapek é bem diferente da imagem de robô que temos atualmente: ele não é de metal, mecânico ou minimamente tecnológico. Os robôs de Rossum são feitos de carne com órgãos e tudo o mais, tendo poucas diferenças fisiológicas em relação aos humanos, o que mais diferencia (além de, claro, serem fabricados) é a sua mente pois eles são programados psicologicamente para servirem. Mas essas diferenças são o bastante para que eles não sejam considerados mais humanos? Bom, levando em conta a revolta e o massacre que acontece no meio da narrativa causada por uma insatisfação e noção de superioridade, no ponto de vista dos robôs não é possível haver comparação com os humanos. Entretanto, a complicação para os próprios se encontra no fato do processo de fabricação dos robôs ser de conhecimento unicamente dos projetistas, logo os robôs que tanto querem se tornar livres retornam a um estado de dependência da humanidade que eles tanto renegam.
Para uma melhor compreensão da obra não se pode de maneira alguma esquecer o contexto histórico social em que ela foi escrita, afinal, a Revolução Russa que ocorre em 1917 junto com a criação da União Soviética foi algo que impactou completamente toda a produção artística da época, especialmente na região do leste europeu. Uma sociedade trabalhadora abusada pelos seus líderes e que decide então se revoltar contra eles, lembra algo que já lemos aqui, não? A obra de Čapek pode ser entendida então como um manifesto contra a mecanização do trabalho (que não tem como não lembrar de Nós, de Zamiátin, e que já trouxe resenha aqui), entretanto, essa crítica continua atual da maneira que o autor a trouxe?
Pague um, leve dois
A edição que a Madrepérola trouxe é muito interessante pois, além de trazer a peça traduzida diretamente do tcheco, ela traz uma adaptação da história em prosa e deslocada para tempos mais atuais, escrita por Rogério Pietro, que também foi o tradutor do material original. Quando peguei esse livro para ler fiquei muito em dúvida se iria ou não ler a adaptação pois não sou muito fã disso, prefiro mesmo ler o material original, mas ainda assim dei uma chance pois parecia bem interessante e a escrita do autor era bem fluida.
O ponto nisso tudo é que talvez toda essa crítica que Čapek faz, quando trazemos para os tempos atuais e todas as discussões que temos, não se encaixe mais tão bem assim. Ok, ainda se pensa algumas vezes sobre a mecanização da sociedade, não da mesma maneira de antes, mas nunca foi uma questão que deixou a mente dos filósofos e pensadores. Entretanto, fazendo comparações com o mundo atual, pode se entender os robôs como as minorias oprimidas; sendo assim, a visão que o livro traz é que em algum momento do futuro as comunidades oprimidas, sejam elas pessoas não-brancas, LGBTs ou PCDs, vão se revoltar e matar os seus opressores? Não quero dizer que esse foi o entendimento que tive da história, não, entendo que ela ainda fale sobre a questão de mecanização e revolta das “máquinas”, mas em um país onde coisas são tiradas de contexto para deturpar completamente a mensagem original, a propagação de fake news continua a toda e pessoas não sabem interpretar um texto e depois vão para o Twitter falar algo completamente diferente que leu (*cof cof* jkrowling *cof cof*), não é tão impensável assim que alguém leia o livro e venha a ter o entendimento que eu coloquei acima. Esse é o perigo de tirar uma obra do seu contexto histórico e transportá-la para outro, o que, na minha opinião, não justificou a adaptação em prosa que a editora trouxe.
Isso não é um demérito para o trabalho de Pietro, não, ainda é uma adaptação muito boa de ler que conseguiu aprofundar bem os acontecimentos que não foram retratados na peça, mas manter a mesma mensagem do original não foi a melhor escolha. Quanto ao que achei da peça, o que posso falar é o que Asimov falou da obra de Čapek: “terrivelmente ruim, porém é imortal por essa única palavra”. Talvez ele tenha sido um pouco duro ao dizer que é terrivelmente ruim, R.U.R. tem os seus méritos (mais defeitos que méritos, mas tudo bem), mas de fato a adaptação em prosa consegue trabalhar alguns pontos narrativos melhor pois o formato de peça teatral acaba por limitar demais o autor.
Ele sempre esteve entre nós
Por mais que R.U.R. não seja uma obra tão lembrada assim, é incontestável a influência que ela teve na cultura. Séries como Star Trek, Batman: The Animated Series, Doctor Who, Futurama, entre outras, fazem referência à peça de Čapek e ao próprio autor, no entanto, enquanto eu pesquisava mais sobre o livro para escrever essa resenha, o que mais me chamou atenção foi o robô Eric, um robô construído na Inglaterra em 1928 e que traz no peito as letras RUR.
É uma obra mais que essencial para quem é fã de ficção científica e que eu recomendo pelo menos a peça de Čapek, por mais que ela já não seja mais tão atual assim e que hajam outras obras que tratam do mesmo tema de uma maneira melhor. Deixando claro que haver outras obras que tratem melhor de um tema do que um livro tratou não significa que o determinado livro não seja recomendável ou que ler ele seja uma perda de tempo, pelo contrário, é necessário ver os dois lados para uma melhor opinião crítica além de contribuir ainda mais no seu entendimento sobre aquele determinado assunto, afinal, uma opinião não é formada somente por afirmações ou questões positivas, ela deve ser equilibrada ainda com respostas e contrarrespostas, deve ser posta à prova para que seja de fato forte e concreta.
❧ R.U.R.: Robôs Universais de Rossum (publicado originalmente em 1920, adaptação em 2021)
❧ Karel Čapek e Rogério Pietro
❧ 386 páginas
❧ Editora Madrepérola
❧ Tradução de Rogério Pietro
❧ ★★★1/2





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