Nós (Ievguêni Zamiátin) - Nada se cria, tudo se copia
E quem somos Nós
Sei que normalmente eu começo essa parte da resenha falando um pouco sobre algum contexto referente ao livro ou à época em que ele foi escrito, entretanto dessa vez começarei pela minha experiência durante a leitura: péssima. Não foi uma leitura nem um pouco prazerosa de fazer, foi complicada por alguns fatores dos quais irei falar mais a frente, mas o ponto é que essa experiência nem um pouco agradável fez com que a história nem criasse uma raiz profunda o bastante na minha cabeça para que eu me sentisse capaz de falar com muita propriedade sobre esse livro como sempre faço. A sinopse é bem simples: o protagonista, chamado D-503, vive em uma sociedade distópica cerca de mil anos no futuro que vive sob o julgo de um governo totalitário intitulado Estado Único; D-503 então se aproxima mais de I-330, uma rebelde que trabalha ao lado de um grupo que pretende lutar contra o Estado Único e libertar essas pessoas. Até aqui já percebemos muito bem como Nós influenciou Orwell na escrita de 1984 e quando se chega ao final do romance de Zamiátin é como se o livro de Orwell fosse uma versão retrabalhada da obra anterior, já que ambos os protagonistas escrevem em um diário suas experiências e pensamentos (que vêm então a serem os livros que temos em mãos), a relação com uma mulher que tira o véu que cobre seus olhos e o final que não irei falar aqui, mas que é possível traçar vários paralelos entre eles.
O ponto que fez essa leitura ser tão custosa para mim foi a maneira como ela é narrada; aqui, diferente de 1984, não temos uma leitura tão fluida assim ou com um personagem que o leitor consegue criar uma relação: D-503 é chato, ele se recusa a ver as verdades que estão na sua frente, mesmo depois de todas as coisas que lhe acontecem ele permanece do lado do Estado Único até o final, além das suas divagações que cansam o leitor e em vários pontos me fez perguntar “Tá, mas o que ele quis dizer com isso?” ou “Era necessário?”. Ele não é direto, ele faz umas reflexões que para entender parece ser necessário que o leitor esteja sob uso de narcóticos e (porque tudo isso não é bastante) você ainda tem que ler e reler os parágrafos pois, por mais que as coisas que ele fale não tenham muito sentido, ainda fica estranho continuar a leitura sem ter entendido pelo menos 10% do que ele falou, portanto às vezes é necessário reler e reler até conseguir continuar em frente.
Quanto ao paralelo que temos com Admirável Mundo Novo, em ambas as obras temos uma sociedade mecanizada e antinatural, mas que não renega a um instinto básico: sexo. Em Nós fica mais explícito ainda essa mecanização já que é mostrada essa estrutura social onde pessoas são chamadas por uma letra e número, se vestem igual, resumindo, todos são células “idênticas” que fazem parte de um grande sistema; toda essa estrutura é baseada no Taylorismo, um sistema de trabalho que busca uma maior eficiência no menor tempo possível onde cada trabalhador faz uma tarefa específica de maneira repetitiva e mecanizada. Ainda em Nós, cada pessoa (que no livro é chamada de número) tem a sua tabela de horário específico, tendo um tempinho livre para ele fazer o que quiser, mas normalmente esse tempo livre é destinado a sexo ou socialização com outro número. Um ponto muito interessante que surge no meio do livro é a chamada História dos três libertos, uma história moral conhecida pelos números onde três deles tem sua tabela completamente livre por um tempo e assim eles têm horas inteiras para viver a vida, mas como se vive uma vida onde não há cultura, algo para fazer, para assistir, algo de fato para fazer? No Estado Único não há livros, não há filmes, não há música, se algo do tipo é produzido é com o intuito de engrandecer o governo, é uma sociedade vazia; sendo assim, os três números decidem cometer suicídio pois não há razão em viver se não há trabalho a fazer. Assustador para os dias de hoje e para os números do Estado Único, mas, claro, causando efeitos diferentes entre essas duas partes. E nesse ponto podemos então fazer o paralelo com Fahrenheit 451, onde a cultura é completamente minada e os livros são proibidos, mas pelo menos no romance de Bradbury as pessoas tinham aquelas TVs enormes onde podiam ver as vidas vazias de outras pessoas enquanto viviam as suas próprias vidas vazias. Em Nós, não só a vida dos números é vazia, mas também eles próprios: o ideal é eles não terem imaginação ou sentimento e, quando alguém desenvolve algo do tipo, eles dizem que essa pessoa está doente.
Para a comparação final (e dessa vez não tão forte como as anteriores), o Estado Único em determinado ponto da narrativa, com medo de que revoltas se tornassem cada vez mais constantes, começam um processo da Grande Operação, como eles assim o chamam, onde os números passam a ser como “tratores em forma humana”, são completamente mecanizados para melhor aproveitamento do Estado retirando por completo o pouco que ainda os tornava humanos. Impossível dizer que esse processo não lembre um pouco a lavagem cerebral pela qual Alex passa em Laranja Mecânica, um processo em que a mente da pessoa é modificada para um melhor aceitamento da sociedade, mas até onde esse processo ainda torna ou não torna a pessoa humana? Afinal, os números de Nós podem ser considerados pessoas depois da Grande Operação? E antes? São perguntas que o romance de Zamiátin deixa ao leitor, ou pelo menos deveria se a escrita ajudasse um pouco e não fosse tão confusa.
Indo para a história por trás do livro, ele foi escrito entre os anos de 1920 e 1921, na Rússia pós-Revolução Comunista, então já se vê que ele não foi muito bem sucedido em publicar por lá. Sua primeira publicação só ocorreu em 1924, nos Estados Unidos com uma tradução para o inglês; sua publicação na Rússia só aconteceu em 1988, quando a glasnost, política de transparência do governo soviético e trazida por Gorbachev durante os últimos anos da União Soviética, possibilitou sua publicação, entretanto, o autor não chegou a ver isso acontecer já que morreu em 1937, exilado de sua terra natal. A edição nacional de Nós, publicada pela editora Aleph, traz, além do romance, uma resenha escrita por Orwell em 1946 onde, entre outras coisas, aponta como o livro de Zamiátin influenciou a obra mais conhecida de Huxley (o que este último veio a negar em uma carta de 1962); traz ainda a carta que Zamiátin escreveu à Stalin em 1931 pedindo que fosse autorizada a sua saída da União Soviética.
Nós não é tão conhecido quantos as obras que bebem de sua fonte, nem tão bom de ler também, mas é uma obra essencial para todo fã de ficção científica e distopia para entender de onde se originou os grandes romances que vieram depois dele. Não é porque eu não gostei (quase detestei) essa leitura que deixaria de recomendá-la, mas que fique bem claro o aviso de que não é uma leitura simples ou fácil, que para alguns pode ser maçante e que precise de mais paciência do que o normal. As quatro obras que citei anteriormente e que se inspiram no romance de Zamiátin podem até mostrar uma realidade um pouco mais próxima à nossa do que a retratada pelo russo em seu romance, mas o Estado Único não deixa de ser algo que pode um dia vir a se tornar real ou menos pavoroso.
❧ Nós (publicado originalmente em 1924)
❧ Ievguêni Zamiátin
❧ 344 páginas
❧ Editora Aleph
❧ Tradução de Eneida Favre
❧ ★★★




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