Norte e Sul (Elizabeth Gaskell) - O orgulho e o preconceito da classe trabalhadora
Todo leitor deve conhecer, ou pelo menos já deve ter ouvido falar, Jane Austen e as Irmãs Brontë, grandes romancistas inglesas do século XIX, mas não são todos que conhecem um outro grande nome do mesmo período: Elizabeth Gaskell. Não tão publicada no Brasil quanto suas predecessoras, a senhora Gaskell é dona de uma obra considerável e importante para a sua época ao tratar de temas sociais, assim como um grande amigo seu, um senhorzinho chamado Charles Dickens. Norte e Sul é o primeiro livro que leio dela e foi uma experiência incrível de leitura e descoberta, tanto de uma autora quanto do tema tratado na obra e uma realidade que eu não conhecia, mas antes de falar sobre tudo isso quero começar explicando um gênero bastante interessante:
O romance social inglês
De início, o romance social lembra bastante o que aprendemos na escola sobre o realismo/naturalismo: é um romance que trata sobre os problemas sociais, entre eles a luta de classes, a pobreza, o racismo e as diferenças de gênero. No entanto, não se pode esquecer que enquanto as escolas realistas e naturalistas são períodos academicamente delimitados tendo um marcos iniciais e que depois são sucedidas por outras escolas, o romance social é um tipo de romance que não vai ter um período fixo para ser feito ou que irá deixar de funcionar depois de um tempo. Se pegarmos a própria literatura nacional, em 1890 temos O Cortiço de Aluísio Azevedo que irá falar sobre diversos temas e problemáticas sociais; avançando até o ano de 1930, temos a publicação de O Quinze de Rachel de Queiroz que já traz luz ao tema da seca e as dificuldades passadas pelas famílias do sertão cearense; avançando ainda mais no tempo, para o ano de 2019, Itamar Vieira Junior publica então Torto Arado, tendo como tema a escravidão ainda nos dias de hoje. O romance social nunca sai de moda pois, infelizmente, os problemas sociais ainda persistem, seja no século XIX ou em pleno século 2022, ano da copa.
Agora indo para um nicho mais específico, o romance social começa a tomar grande forma e força na primeira metade do século XIX, esse efeito foi causado principalmente pela revolução industrial a qual o país estava passando, além das reformas sociais e políticas que estavam fervendo no período. Com um objetivo de denunciar às classes média e alta as dificuldades que as classes mais baixas sofriam, o romance social é, de forma bem resumida, carregado de tristeza e sofrimento, gente sofrendo por causa da carga de trabalho abusiva e gente rica que não liga para pobres. Dois grandes nomes desse gênero são os já citados Dickens e Gaskell, o primeiro tendo como grandes obras representativas Oliver Twist e Tempos Difíceis, e a segunda tendo seus dois primeiros romances como grandes exemplos do gênero: Mary Barton (que desejo muito ler ainda) e Norte e Sul, que quero tratar nessa resenha.
A parte “Orgulho e Preconceito” desse livro
Norte e Sul narra a vida de Margaret Hale, uma jovem que de início vive na casa de sua tia em Londres, juntamente com a sua prima que irá se casar em breve com o capitão Lennox; após esse casamento muito esperado, Margaret volta para a sua terra natal, a pequena aldeia de Helstone no sul do país, e volta a viver com a sua mãe e o seu pai que é pároco da pequena igreja da aldeia. Uma coisa bem interessante desse início do livro é como o plot da narrativa não é colocado tão de início assim: passamos primeiro um tempo curto com Margaret em Londres, sendo aqui um primeiro núcleo da história, a sua vida em meio à alta sociedade de Londres; quando ela volta à Helstone, o sr. Lennox, irmão do marido da prima de Margaret, faz um passeio até a aldeia e de repente pede a mão da protagonista em casamento e então o que poderia ser o início da história dos dois cai por terra já que ela recusa o pedido. O terceiro início, e definitivo, acontece após o pedido de casamento, quando em uma conversa com o seu pai a protagonista é informada que ele irá deixar de ser pároco por uma questão intelectual (quero falar um pouco mais disso adiante) e então, juntamente com a sua família, irá se mudar até Milton, ao norte da Inglaterra, para se tornar professor particular.
Milton é uma cidade industrial, tendo como principal produto de fabricação o algodão (ponto importante para uma personagem que irá surgir!), enfumaçada, caótica, movimentada, não podia ser mais diferente da idílica aldeia que Margaret tanto gostava e que até ficava irritada quando faziam pouco dela. O sr. Hale tem entre seus alunos o dono de uma das fábricas locais, John Thornton, com quem Margaret de cara já cria antipatia (desde que vivia na aldeia ela já não gostava de comerciantes [sim, meio estranho, mas ok]), mas seja por ter lido a sinopse ou porque o enemies to lovers é um plot batido, o leitor já vai saber que vai surgir um romance entre eles. No entanto, não ache que vai ser tão rápido assim, vai demorar muito até que eles entendam que sentem algo um pelo outro, até lá ainda teremos muita tragédia acontecendo.
Sofreu mais que a Ju
O sr. Hale era o único que tinha um emprego em Helstone, ser pároco, ou seja, a família Hale não tinha muito dinheiro ou luxos, mas conseguia se sustentar; com todo o processo de mudança e conseguir uma nova casa em um lugar diferente, os Hale entram em mais dificuldades financeiras. Isso junto com o fato de se mudar para um lugar ruim deixam a mãe de Margaret deprimida e bastante doente (interessante que quando moravam em Helstone de três falas da mulher, duas eram reclamando que aquele lugar era horrível e que o ar fazia mal à ela). Há ainda outro membro da família que não está com eles, Frederick, irmão de Margaret que não pode pisar na Inglaterra por supostamente ter participado de um motim durante o seu tempo na marinha. O isolamento do seu querido filho deixam a sra. Hale ainda mais depressiva.
Um dos primeiros amigos que Margaret faz ao se mudar para Milton é Nicholas Higgins, trabalhador de uma das fábricas que tem duas filhas, Mary e Bessy, essa última bastante doente por ter trabalhado em uma fábrica de algodão e os pequenos fios terem acabado com o seu sistema respiratório. Se a menina Bessy ou a mãe de Margaret irão sobreviver ou não isso cabe ao leitor descobrir, não darei spoiler, mas devo avisar que fiquei bastante chocado com a quantidade de tragédia seguida que se deu na história, achei a história da Margaret muito parecida com a da Ju.
Tá certa a indignação
O núcleo dos Higgins é o principal canal pelo qual a autora irá fazer a sua denúncia sobre a situação degradante e até fatal pela qual os trabalhadores passam nas fábricas. A situação entre os trabalhadores e os donos de fábrica em Milton na narrativa é tão fervorosa que ocorre uma manifestação em frente à casa de Thornton e uma pedra é jogada contra ele. No entanto, um ponto muito interessante que a autora traz é como os donos das fábricas não são por completo os vilões, há uma questão de como eles precisam organizar as finanças para que não entrem em falência, e nem os trabalhadores estão completamente corretos chegando a tomar atitudes extremas, como no caso da pedrada. Ou seja, não um lado mal e bom nessa história, não é uma questão maniqueísta, mas existem lados e lados que precisam entrar em equilíbrio.
Além da questão trabalhista, o núcleo dos Higgins traz ainda uma questão de como a religião é como uma esperança, uma luz que irá tirar Bessy de todo aquele sofrimento pelo qual ela passa nessa terra sombria e nessa vida sofrida. Esperança essa que Nicholas renega. Desde o início da história há uma questão de aceitação e negação da religião que sinto não ter absorvido por completo, mas que com certeza são pontos essenciais para a construção do discurso dentro desse livro. Não um discurso de que a religião deve ser completamente aceita ou negada, mas que deve haver um equilíbrio, e é nisso que o livro se sustenta: um equilíbrio entre os dois lados. No início, Margaret vê sua pequena aldeia como um lugar ideal, quase utópico, e Milton como o inferno na Terra, mas no decorrer da narrativa essa imagem irá cair, principalmente depois que ela visita Helstone após um tempo de sua mudança. A ideia de Margaret sobre o norte e o sul entrou em equilíbrio.
700 páginas que passaram voando
Norte e Sul não é um livro curto, a edição da Martin Claret possui 748 páginas por exemplo, mas é uma leitura tão fluida de se fazer, uma escrita envolvente e que te faz querer saber o que acontece no capítulo seguinte, que eu conseguia ler mais de 200 páginas em um dia facilmente sem me cansar. É uma leitura que te faz pensar, te faz querer pesquisar um pouco mais sobre o período para entender sobre o que a autora está falando ali. Algumas questões poderiam ter sido melhor tratadas ou talvez não funcionem mais nos tempos atuais? Sim, provavelmente. Mas não se pode tirar a história do seu tempo ou esperar que ele rompa todas as barreiras possíveis quebrando mil e um tabus da época. É um livro que eu recomendaria facilmente para quem quer um romance vitoriano, por mais que às vezes o romance seja deixado um pouco de lado, mas também recomendaria que fosse lido com calma e sem pressa para que as ideias e discursos que a autora quer passar sejam bem assentados na mente do leitor. Discursos importantes tanto para a época em que ele foi escrito quanto para os dias de hoje.
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| Elizabeth Gaskell bem ladyzona |




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