Filhos de Duna (Frank Herbert) - Uma viagem psicodélica no meio do deserto


Comecei a ler a saga de Duna lá em 2021 por recomendação de uma pessoa muito querida para mim, após terminar o primeiro livro já engatei logo na leitura do segundo e a mistura de sentimentos e sensações que esse “double-feature” me causou é algo que até hoje não se repetiu quando comecei uma série nova. Depois de um certo tempo que li o segundo eu adquiri o resto dos livros da saga, mas ainda assim não me sentia pronto para voltar pois sabia que seria algo complexo e eu teria que ter paciência para mergulhar novamente em algo que me faria pensar muito a cada capítulo.

Ano novo, novas metas, entre elas terminar os livro de Duna escritos pelo Frank Herbert, autor original e criador desse universo, e quem sabe até ler a continuação da saga que foi escrita pelo seu filho junto com Kevin J. Anderson. Voltando ao ponto em que parei, começo Filhos de Duna sem saber o que esperar, mas também não esperava que fosse o que foi. Sim, confuso, assim como esse livro.

Duna, Messias de Duna e o GOSTOSO do Paul Atreides

Fazendo uma breve recapitulação da saga até o começo do terceiro livro (spoilers à seguir, então leia por sua conta e risco ou se já leu eles e tá aqui para saber o que outra pessoa achou da viagem psicodélica que é ler esse livro), no primeiro livro, Duna, acompanhamos a chegada da Casa Atreides no planeta Arrakis, também conhecido como Duna por ser um planeta desértico. Em meio à conspirações, tramas palacianas e ataques soturnos, os Atreides são destituídos do poder sofrendo um grande golpe, tanto político quanto físico mesmo já que o líder, Duque Leto Atreides, entre outros membros da corte foram assassinados pela casa rival, os Harkonnen, que desejam controlar todo o comércio de especiaria, o produto mais valioso daquela sociedade. Isso tudo em 30% do livro, já é muita informação. Após esse golpe, Paul, filho de Leto, foge com sua mãe, Jéssica, para o deserto onde lá ele encontra o povo do deserto, os fremen, e se junta àquela sociedade. Anos depois, Paul planeja tomar o governo do planeta novamente e orquestra um ataque que se torna o ponto épico do livro em que os fremen lutam contra o exército dos Harkonnen e depois de muitos acontecimentos e blá blá blá Paul se torna o novo imperador de Arrakis.


Portanto, nesse primeiro livro temos a apresentação de um universo milênios a frente do nosso, sem máquinas inteligentes pois elas são proibidas, com sistemas políticos que lembram o feudalismo e uma religião matriarcal que tem o dedo metido em tudo, não importa o que for. Além disso, temos também a construção de Paul Atreides, o Muad’Dib, um ser aparentemente divino e herói, tanto para a sua casa como para o seu novo povo, os fremen. Tendo então toda essa construção e ascensão gloriosa, no segundo volume, Messias de Duna, vemos a sua queda que não vou falar tanto aqui pois na verdade eu não lembro tanto assim como me lembro do primeiro livro, mas o importante para saber é que anos se passaram desde o primeiro livro e o reinado cansa nosso protagonista, agora mais velho e agoniado com o caos que acontece. Ao final do livro ele fica cego e vai sozinho ao deserto para se isolar, deixando os gêmeos recém nascidos sem pai e sem mãe já que Chani que ele conhece e se apaixona no primeiro livro morre durante o parto. Mais intriga, mais conflito, esse é um livro mais de transição entre o primeiro e o terceiro, funcionando como um “epílogo” de Duna, acabou não me prendendo tanto.

LSD em forma de livro

Indo agora para o que de fato eu vim falar sobre, Filhos de Duna foi uma experiência bem diferente dos livros anteriores, primeiro pela sua história e segundo pela maneira como ela própria foi contada. Dando uma rápida sinopse, anos depois do final do segundo livro os filhos de Paul, Leto II e Ghanima, estão um pouco mais crescidos, mas não reinam em Arrakis pois ainda são crianças; quem no momento tem o papel de líder político do planeta é Alia, filha de Jéssica com Leto que nos foi apresentada no segundo livro como uma criança que espantava as pessoas por ser uma pré-nascida (durante a gravidez, Jéssica ingeriu bastante mélange, o produto que vem da especiaria, e isso afetou o desenvolvimento de Alia ainda no útero com ela adquirindo consciência mesmo na fase fetal e podendo ter acesso à memórias de seus antepassados, até mesmo falando com eles como se fossem vozes internas, outras consciências dentro dela mesma). Leto e Ghanima também são crianças pré-nascidas, mas diferente de Alia, eles não sucumbem às vozes internas, enquanto sua tia ouve bastante a voz de Vladimir Harkonnen, vilão do primeiro livro da saga e pai de Jéssica, portanto seu avô; assim, Alia é chamada de Abominação por estar “possuída”. Ainda no começo do livro, quem retorna a Arrakis é Lady Jéssica, agora uma importante líder espiritual por ser a mãe de Paul Muad’Dib, agora um ser deificado, reverenciado como um deus. Novamente tramas palacianas e intrigas permeiam o livro, causando grandes reviravoltas que deixam o leitor espantado e querendo saber o que irá acontecer a seguir. Se não fosse por um porém…

Me lembro de que a experiência de leitura dos dois primeiros livros foi bastante prazerosa, eu não conseguia parar de ler porque queria saber aonde aquilo iria dar, qual seria o próximo personagem a morrer, qual seria a próxima reviravolta, e boa parte da causa dessa experiência é a escrita dos livros ser bastante fluida e a história ser mais clara, mesmo que não deixasse tudo explícito. Com o terceiro livro isso já não aconteceu, eu não entendia direito os objetivos dos personagens ou de que lado eles estavam, a escrita parecia bem mais prolixa e detalhando pontos que eu não entendia o porque de estarem ali, além da construção de alguns personagens parecer muito mal feita. A própria Jéssica que é uma personagem incrível para mim não foi mais do que um objeto dentro dessa narrativa, sendo passada de mão em mão sem deixar claro o que ela queria ou de que lado ela estava, se dela própria, das Bene Gesserit ou se da Casa Atreides (que nesse caso podemos definir como os filhos de Paul excluindo totalmente Alia). A sua relação com Alia desde o início se mostra bastante complicada e elas se posicionam como rivais, mas não é dito o porque, isso acontece só mais para a frente em uma discussão acalorada e é solto como uma coisa que todo mundo já entende menos o leitor; se era para ser uma coisa muito grandiosa, uma revelação arrebatadora, ela não tem essa força e só te faz pensar “tá, mas porque ao invés deles tratarem a Alia como uma coisa horrível eles não ajudaram ela desde o início para que ela não se tornasse uma ‘possuída’?”. Em uma discussão entre Jéssica e Leto é exatamente isso que ele fala, no fundo boa parte do conflito que acontece nesse livro seria resolvida com uma sessão de terapia familiar.

A história só começou a engatar de fato depois da tentativa de assassinato contra Jéssica e a peregrinação de Leto para o deserto, mas a escrita não ficou menos prolixa, pelo contrário, já que boa parte da trama de Leto no deserto era só ele e os próprios pensamentos confusos, que mais parecem uma viagem psicodélica, acontece uma enrolação enorme. Toda essa trama era necessária para acontecer a sua transformação mais à frente? Sim, ele não entenderia o Caminho Dourado sem toda essa lenga lenga, mas ainda me pareceu uma coisa muito desconexa. Falando em desconexo, o fato de Vladimir Harkonnen “voltar” é muito solto porque só me lembro dele de fato fazendo uma coisa acontecer uma única vez, nas outras em que ele tentava se meter no governo por meio de Alia ele era bloqueado pela força de vontade da própria. Agora, força de vontade de fazer o que isso não ficou claro para mim, eu terminei o livro sem entender o que a Alia de fato queria. O mais provável era que ela quisesse continuar no poder, como líder política e espiritual, mas não tem uma construção dos desejos da personagem bem feita para que você entenda o que de fato ela quer. A história, as tramas, os conflitos, tudo isso é muito interessante e você quer saber no que aquilo vai resultar, ainda mais depois da virada de trama do Leto em que ele vira um meio verme de areia meio humano que vai viver e reinar por milênios, mas toda a construção para imergir e integrar o leitor na narrativa é falho demais. Ainda assim eu dei quatro estrelas porque os pontos altos da narrativa são Os Pontos Altos, eu fiquei de boca aberta por uns três minutos durante a cena da transformação.

Agora, um ponto que eu adorei é a questão da terraformação do planeta e transformação do clima e ecossistema. No primeiro livro nos é apresentado um planeta desértico e que desafia todos que habitam nele a sobreviver, mas também descobrimos que há pessoas que trabalham em planos para torná-lo mais habitável, construindo áreas com corpos de água e vegetação verde. Com a subida de Paul ao poder é iniciado um processo de terraformação em que os planos citados anteriormente são colocados em prática e o planeta começa a passar por transformações. No entanto, os grandes vermes de areia são aversos à água, eles podem até morrer por causa dela, e o que move Leto II é parar esse processo de transformação no planeta pois sem vermes de areia (eles começaram a se tornar mais raros depois de um tempo) não há especiaria e sem especiaria a vida em toda a galáxia seria prejudicada. Ou seja, por trás de todo essa ficção científica e fantasia, durante os três livros há um tema extremamente importante tanto para a época quanto para os dias de hoje: as transformações climáticas e mudança de ecossistema, além dos efeitos positivos e negativos que elas causam. O que mais me encanta e fascina em gêneros literários mais surreais, como a fantasia, o terror e a ficção científica, sãos os discursos reais, sejam eles políticos, sociais ou estruturais, que são o pano de fundo da construção narrativa; são histórias que tem temas fantásticos, mas seus discursos são bastante reais.

Em conclusão

Gostei sim do livro, achei incrível e tudo o mais, mas peca muito em sua construção o que acabou me decepcionando bastante, ainda mais por essa ser a finalização da primeira parte de uma saga que com certeza tem um lugar no meu coração. A partir desse ponto a história de Arrakis irá avançar 3500 anos e poucos personagens devem retornar ao longo dos outros livros (nada nunca está morto de verdade!), estou bastante ansioso para saber onde tudo isso vai dar e compartilhar como tem sido acompanhar essa saga, mas também com medo pela questão dos livros 7 e 8, uma coisa que contarei outro dia.

Para além de Arrakis


Não podia deixar essa resenha sem uma recomendação, infelizmente queria poder recomendar a adaptação de Filhos de Duna, mas não assisti ela (ainda). Ainda assim, para quem quer saber um pouco mais, Filhos de Duna ganhou uma adaptação em minissérie de três episódios produzida pela Sci-Fi Channel (atualmente Syfy) em 2003 que adapta tanto o terceiro livro como o segundo. Ouvi boas recomendações, então deixo aqui a dica mesmo não tendo contato com ela.

Além disso, claro que eu não podia deixar de citar aquela beleza, uma pérola, um diamante, que é a adaptação do Villeneuve, com base no primeiro livro, lançada em 2021 e que vai ganhar sua continuação (caso não seja adiada) ainda nesse ano de 2023. Se depois disso ele vai contar a história do segundo e terceiro livro não sabemos, mas a recomendação não perde a força ainda assim, vale muito a pena conferir esse filme.

Agora, recomendando algo que de parecido só tem o branco do olho, uma série que vi recentemente e gostei bastante foi The Mandalorian, que integra o universo de Star Wars e conta a história de um mandaloriano caçador de recompensas ao lado de um pequeno alien super fofo. Tá, falei quase nada, mas o bom é ir assistir sem saber nada mesmo! No entanto, faço essa recomendação aqui pois no primeiro episódio da segunda temporada fica extremamente claro as referências que temos à Duna: primeiro, esse episódio se passa em Tatooine, um planeta desértico assim como Arrakis; segundo, nesse episódio o mandaloriano tem que lidar com um dragão krayt, um bicho enorme de formato cilíndrico que consegue andar por baixo da areia… lembra algo não? Quando paramos para analisar alguns pontos em toda a saga de Star Wars vemos que ela foi bastante inspirada em Duna, mas segue alguns caminhos opostos. Outro coisa que também gostaria de recomendar, caso tenha gostado de The Mandalorian, é The Book of Boba Fett. É uma das melhores produções de Star Wars? Não, nem de longe. Mas ainda assim ela expande bastante todo o esquema de Tatooine, além do próprio personagem protagonista de The Mandalorian. Ok, o Boba é bem deixado de lado depois de um tempo NA PRÓPRIA SÉRIE, mas ainda fica a recomendação. E um bônus dessa série é que em um episódio ocorre contrabando de uma coisa que eles chamam de “especiaria”, um narcótico. Eles nem disfarçam que foi inspirado em Duna.

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