A Casa dos Espíritos (Isabel Allende) - Vai se criando um clima...
Não lembro com certeza qual foi a primeira vez que ouvi falar de A Casa dos Espíritos e Isabel Allende, mas me lembro bem de duas referências a ela em determinadas cenas de duas séries diferentes: primeiro, em Gilmore Girls, quando Rory tá falando sobre Allende com um cara da faculdade e fala que A Casa dos Espíritos pode ser o mais conhecido da autora, mas Eva Luna é uma obra prima; a segunda foi em Jane, the Virgin, que tem como protagonista uma escritora descendente de uma família venezuelana, onde ela cita como uma das inspirações Isabel Allende e Gabriel García Márquez, com Isabel até fazendo uma aparição na série.
Logo, dá pra perceber como Isabel Allende e sua obra são cânones dentro da literatura ocidental, servindo de inspiração e ponto de início para quem se interessa por literatura latino-americana. Então, depois de muito ouvir falar sobre, mas nunca descobrir sobre o que realmente esse livro fala, tomei coragem e peguei A Casa dos Espíritos para ler, se tornando uma das leituras mais arrebatadoras que já fiz na vida.
O realismo mágico
Primeiramente, é preciso falar um pouco sobre o realismo mágico, corrente artística que surge na América Latina do século XX e onde A Casa dos Espíritos se encaixa. Se utilizando de elementos surreais para contar uma história tangível e concreta, o realismo mágico faz com que aspectos fantásticos e sobrenaturais sejam tratados como algo cotidiano e corriqueiro dentro da narrativa. Os principais nomes dessa corrente são Gabriel García Márquez, na Colômbia, Jorge Luis Borges, na Argentina, Juan Rulfo, no México, e Isabel Allende, no Chile.
Era uma casa muito engraçada
A Casa dos Espíritos conta a história da família Trueba, mas não é com eles que a história vai começar; ela inicia um pouco antes, com a família del Valle, tendo como membros notáveis as filhas Rosa, considerada extremamente bela, e Clara, a clarividente. Primeiro é necessário dizer que não há de fato protagonistas nesse livro pois a narrativa perpassa três gerações, mas dá um enfoque especial nas mulheres Trueba, mãe, filha e neta, ao longo do século XX em um país sem nome, mas que apresenta várias semelhanças com o Chile, país o qual possui a nacionalidade da autora.
Voltando à história, Rosa estava comprometida com Esteban Trueba, um homem sem muitas posses e que busca ascender economicamente para estar ao nível de sua noiva, até que Rosa morre deixando Esteban arrasado. Após o enterro de Rosa, Esteban parte para a fazenda decadente de sua família, Las Tres Marias, e lá começa a sua ascensão social e econômica. Enquanto isso, Clara cresce e, depois de anos sem dizer uma palavra, acorda um dia e fala que irá se casar com Esteban. Em um noivado rápido, Esteban e Clara se casam, começando então de fato a família Trueba, onde terão então três filhos, entre eles Blanca Trueba, que terá como filha Alba.
Um ponto que deve ser comentado é como os nomes meio que se repetem: Clara, Blanca, Alba, são palavras sinônimas, mas não significa que a personalidade de cada uma é repetida ou que são as mesmas personagens em corpos diferentes, pelo contrário. A característica em comum que as três tem é o fato de que todas são personagens fortes e decididas sobre o que querem, mas a semelhança para por aí; somente Clara é clarividente, seus poderes não foram passados aos descendentes, é uma mulher espirituosa e que não se curva ao marido, mesmo vivendo em uma sociedade patriarcal que não se importa com os direitos das mulheres. Já sua filha, Blanca, é impetuosa, mas acaba por aceitar o destino que lhe é imposto: se casar com um duque francês que dará o sobrenome a sua filha bastarda. Com o fim da família Trueba chegando em Alba, a mais nova tem um pouco de sua avó ao não aceitar as ordens do patriarca, Esteban, e também um pouco de sua mãe ao se relacionar com alguém que a família não aceita, mas, diferente desta última, Alba vai até o fim naquilo em que acredita, não importa se tiver que passar por tortura por causa disso. Clara desde o início é contra colocar o mesmo nome do pai ou de um parente em alguns dos seus filhos pois seria confuso de contar isso em seus diários, contrastando claramente com Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, onde os descendentes vão recebendo os mesmos nomes de seus antepassados e também as mesmas personalidades.
A Casa dos Espíritos é uma história com inúmeros temas: luta, resistência, negação ao patriarcado, amor; é uma narrativa que pode te contar meses ou décadas em um só parágrafo (claro que os parágrafos terem mais de uma página de tamanho ajuda), mas não te cansa porque o tempo todo ela está te contando algo por cima de algo, não só a história da família como também a história do Chile no século XX. Desde o início, ainda narrando os acontecimentos da família del Valle, a política é um plano de fundo intrínseco à narrativa, especialmente o conflito político entre o partido liberal e o conservador. Ao longo dos anos, o comunismo é uma ameaça fantasma que aterroriza Esteban, um latifundiário rico que abusa da mão de obra que trabalha em sua fazenda e nega seus direitos básicos. Culminando no medo de uma “ditadura comunista” e após a eleição de um governo socialista, o presidente do país sofre um golpe militar, assim como aconteceu no Chile em 1973 com a ascensão de Augusto Pinochet ao poder.
O tema da ditadura militar chilena não poderia ter sido escrito por alguém melhor do que Isabel Allende, afinal ela é parente de Salvador Allende, o presidente socialista que sofreu o golpe em 1973. Em várias partes da narrativa, que é quase impossível desvencilhar dos acontecimentos factuais, Isabel deixa claro como a eleição do partido socialista no país de A Casa dos Espíritos foi democrática e um alívio às classes mais pobres, mas um terror aos mais ricos, chegando então ao ponto em que greves e manifestações orquestradas pela direita e com ajuda exterior foram minando a estabilidade e criando um clima de guerra no país. Essa terceira parte da narrativa é forte e triste, afinal, você não acompanha somente a família Trueba se desmanchando, essa já estando fraca desde a morte de Clara, mas também a luta que a resistência aos militares tem no país. Um ponto muito forte durante a narrativa inteira são as diferentes classes presentes nessa história, não só classes de diferentes níveis econômicos, mas também as próprias classes sociais como a aristocracia, burguesia e latifundiários que detém o maior poder econômico, os estudantes que lutam contra a ditadura, os trabalhadores rurais que não possuem direito algum antes da ascensão do socialismo no país, os artistas que sempre se posicionavam a favor da liberdade e contra a opressão, além dos sempre presentes espiritualistas que apareciam na casa dos Trueba.
A escrita de Isabel é ao mesmo tempo simples e complexa, não é difícil e dá pra ler várias páginas em pouco tempo, mesmo tendo poucas falas, orações extensas e narração com parágrafos enormes. Ela se utiliza de uma escrita poética, lançando mão vez ou outra de alguma palavra mais rebuscada dentro de um contexto bastante banal, é uma narrativa tão delicada quanto a história do livro e que te faz sentir parte da família.
Fechando as portas
Eu poderia passar horas e horas falando de A Casa dos Espíritos, não é uma história curta afinal, mas acredito já ter falado o que precisava para te convencer a ler essa obra prima. Não é uma história simples, é profunda e que vai ficar na sua cabeça por muito tempo caso dê uma chance, mas mergulhe de cabeça e saiba quando for o momento certo de ler, o clima é essencial para que você se prenda ao máximo na história dessa família que vai estar com você por anos.
Bônus: tem um filme, né
Em 1993 é lançado The House of the Spirits. Sinceramente, não desejo muito falar sobre esse filme e, caso você tenha gostado do livro, recomendo que fique somente por ele mesmo. Claro, o elenco é incrível: Meryl Streep, Glenn Close, Winona Ryder, Jeremy Irons e Antonio Banderas; mas é inegável que chega a ser incômodo o whitewashing na família del Valle e suas descendentes. O motivo para um elenco branco e que fala inglês é uma melhor distribuição mundial, não dá pra dizer que um filme com um elenco americano vai receber menos atenção que um filme com um elenco latino, mas para quem gosta do livro, entende a sua importância no contexto sócio-político da América do Sul, não desce muito bem esse fato.
❧ A Casa dos Espíritos (publicado originalmente em 1982)
❧ Isabel Allende
❧ 506 páginas
❧ Editora Bertrand Brasil
❧ Tradução de Carlos Martins Pereira
❧ ★★★★★



Comentários
Postar um comentário