Doutor Sono (Stephen King) - Dorme, neném, que a Rose vem te pegar


Tenho um certo trauma com sequências de livros que são lançados anos ou décadas depois do livro anterior por causa do Jogador Número Dois, sequência de Jogador Número Um. Nessa sequência que absolutamente ninguém pediu e ninguém queria, Ernest Cline constrói uma história fraca com personagens que agem como crianças e usando o mesmo esquema do livro anterior, dessa vez de maneira bem decadente. Em decorrência dessa experiência nem um pouco agradável, entrei na leitura de Doutor Sono, continuação de O Iluminado lançada 36 anos depois do clássico de King, com bastante receio e até me perguntando se gostaria de estar fazendo aquela leitura naquele momento, mas foi uma das melhores leituras do ano até o momento.

A mimir

Assim como foi contado ao final de O Iluminado, Danny e Wendy Torrance fogem do Overlook em chamas com a ajuda de Dick Hallorann e tentam seguir a vida. Com o passar dos anos os poderes telepáticos de Danny, chamada de iluminação, foram evoluindo chegando ao ponto de atrair os fantasmas do Overlook; Danny então recorre a Dick para lhe ensinar a controlar melhor seus poderes, mas nada teve resultado melhor do que a bebida. Danny vai crescendo, envelhecendo e perdendo pessoas importantes da sua vida, sendo a bebida a única coisa que acalenta o seu sofrimento e silencia o mundo em sua cabeça.

Depois de um certo acontecimento que vai persegui-lo pelo resto da vida, Danny (agora chamado de Dan) resolve mudar de vida e, depois de muito andar pelos Estados Unidos, resolve se fixar na pequena cidade de Frazier onde consegue um emprego no asilo da cidade e começa a participar das reuniões dos Alcóolicos Anônimos. Enquanto isso, o leitor acompanha o crescimento de uma garotinha chamada Abra Stone que também é uma iluminada desde pequena, chegando até a prever a tragédia do 11 de setembro. Além desses dois núcleos, acompanhamos também o Verdadeiro Nó, um grupo de pessoas com dons que se alimentam da iluminação para sobreviver e se manterem imortais, tipo vampiros. Como já deu para imaginar, o Verdadeiro Nó irá correr atrás de Abra e cabe a Dan o papel de proteger a garota.

Doutor Sono se diferencia completamente do seu predecessor, seja em sua estrutura tendo três focos narrativos, ou seja em seus personagens e histórias individuais, mas um tema que ambos tem em comum é o fato de que são histórias sobre repetições de ciclos. Em O Iluminado vemos o ciclo da violência doméstica que acontecia na família de Jack quando ele era uma criança e que depois ele repete já adulto; já na sua sequência o leitor se depara com a repetição do alcoolismo em Dan, filho de um alcoolista que era filho de outro alcoolista. Talvez se eu soubesse desse ciclo antes de começar a leitura teria pensado que seria um tanto quanto incoerente, afinal Dan sofreu muito quando pequeno por causa dos problemas de seu pai com a bebida e ele repete esse mesmo erro, mas ao ler as coisas pelas quais ele passa é entendível a razão dele se voltar para a bebida. Dan é um personagem incrivelmente tangível, real, crível, até agora um dos melhores protagonistas que já vi nos livros do autor, cheio de fraquezas e traumas reais em meio a uma atmosfera sobrenatural.

Outro tema presente em Doutor Sono, e que vai permear toda a narrativa, é a questão do desejo de sobrevivência. Dan busca sobreviver ao vício que tinha, Abra faz de tudo para sobreviver ao grupo que a está perseguindo e o próprio Verdadeiro Nó faz as coisas que faz para sobreviver, o que não justifica os atos horrendos que eles fazem, mas que o leitor entende seus motivos. Sobreviver é um ciclo que as pessoas repetem todos os dias ao acordarem até adormecerem, um ciclo que você pode abandonar, continuar ou aceitar que não vai mais acontecer no dia seguinte. Dan é chamado de Doutor Sono pois sempre ajuda os idosos que estão morrendo a fazerem a “passagem” da melhor maneira possível, como se estivesse os colocando para dormir; ele é uma pessoa importante naquele lugar pois ele está presente ali no encerramento do ciclo de sobrevivência das pessoas que precisam.

Quase perfeito

Por mais que a narração leve bastante tempo até chegar no ponto de conflito que convergem os núcleos de Dan e Abra em um só, toda a construção que o autor faz dos personagens e de suas vidas até que chegue a esse ponto é necessária: ela deixa os personagens humanos, reais, com mais possibilidade de criar laços com o leitor. Quanto ao Verdadeiro Nó, temos 4 personagens que ganham mais destaque ao longo da narrativa, mas só uma delas ganha uma história de origem, Andi Cascavel, que teria sido melhor se não tivesse ganhado.

Andi é uma garota que não gosta de homens pois ela foi abusada e ao crescer ela atrai pedófilos e os marca como punição. Até aí seria uma personagem muito interessante, se não fosse por uma coisa que depois é jogada: de início ela se considera assexual, não sente atração sexual em relação a ninguém, no entanto, depois ela se descobre lésbica. O ponto aqui é como algo traumático do passado da personagem molda a orientação sexual, um preconceito que vez ou outra surge e precisa ser melhor discutido para que não surja mais. A raiva de Andi contra homens é entendível, claro, mas a maneira como o autor liga o trauma da personagem com a sua sexualidade é, além de desnecessário e não trazer muita coisa para a trama (OK, a parceira dela é importante para a batalha final, mas leves alterações no decorrer do caminho poderiam chegar ao mesmo resultado), ultrapassado e errático, podendo ser melhor tratado.

O gato entrou no quarto

Acredito que a questão de Andi foi o único ponto negativo para mim, fora isso foi uma leitura muito boa e uma grata surpresa, ainda mais quando o seu livro antecessor não me ganhou muito. Talvez eu até tivesse gostado mais se tivesse ouvido em audiobook ao invés de ler em ebook, a primeira metade para mim se tornou algo um tanto arrastado, mas não porque era lento (ele consegue colocar muitos acontecimentos e personagens dentro de poucas páginas, deixando tudo bem dinâmico) e sim porque acho que não estava tão no clima assim para ler ele. Se você gostou de O Iluminado tem quase como obrigação ler Doutor Sono.

Bônus: De volta ao Overlook

Acho que eu queria mais ver o filme do que ler o livro de fato, mas eu precisava ler Doutor Sono antes de conferir a adaptação, então assim que terminei de lê-lo corri para ver o filme. E foi uma das coisas mais preciosas que já assisti na minha vida.

Existe uma grande complicação em adaptar Doutor Sono pois o filme é uma sequência d’O Iluminado lançado em 1980 por Stanley Kubrick, e quem conhece a história por trás sabe que o filme de Kubrick possui diversas diferenças em relação ao material original, sendo a principal de que no filme o Hotel Overlook não explode como no livro. Então, como contar no filme uma história que em determinado momento volta ao local em que ficava o hotel sendo que era para ele estar destruído?

Até mais ou menos a metade, o filme segue bem a história do livro, cortando uma coisa ou outra (sinceramente, senti muito a falta da Momo no filme, mas entendo que ela não teria tanto papel assim), até que chega em um embate entre Dan e seu amigo contra o Verdadeiro Nó e aqui as coisas começam a divergir com personagens morrendo no filme quando no livro eles não morriam, o que foi muito surpreendente para mim porque determinadas mudanças são bem inesperadas, ainda mais quando são personagens que ainda aparecem no livro mais para a frente. Com o Overlook ainda existindo no que podemos chamar de “universo cinematográfico”, Dan volta ao lar dos seus pesadelos para o confronto final contra a líder do Verdadeiro Nó e é um deleite para quem gosta de O Iluminado, o retorno dos fantasmas que estavam presentes no filme antigo, o cenário, chega a ser caloroso ver aquele inferno na Terra novamente.

O filme tem um final completamente diferente do livro, assim como o filme anterior, e isso não é uma coisa ruim. O livro Doutor Sono e o filme Doutor Sono são duas obras distintas que se localizam em dois universos distintos, linhas narrativas alternativas, mas que quase se complementam para quem consumiu as duas obras.


❧ Doutor Sono (publicado originalmente em 2013)

❧ Stephen King

❧ 480 páginas

❧ Editora Suma

❧ Tradução de Roberto Grey

❧ ★★★★1/2

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