O Iluminado (Stephen King) - Quando King previu que o isolamento social de uma família deixaria a pessoa doida
Criar expectativas com um livro muito conhecido é complicado, afinal, se ele é muito conhecido e lembrado mesmo que se passem anos é porque deve ser incrível, certo? Esse foi o caso de O Iluminado comigo. Como um grande fã de terror e de Stephen King, essa obra é um dos clássicos obrigatórios que constam em umas 100 listas de livros do gênero para ler, mas adiei e adiei bastante a leitura dele até que eu me sentisse pronto e com vontade de desbravar uma história tão aterrorizante que é capaz de fazer uma pessoa guardar o livro no congelador. Altas expectativas, resultados não tão satisfatórios assim.
Cadê o Johnny?
Os Torrance são uma família complicada. Um pai alcoolista, uma mãe que sofre com um marido problemático e um garotinho de 5 anos que possui alguns poderes bem estranhos. Após ser demitido do seu emprego de professor por espancar um aluno, Jack Torrance que já está sóbrio há alguns meses busca emprego no Hotel Overlook, um lugar no meio das montanhas e bem isolado. Ele consegue o emprego e a família se muda para o hotel onde Jack será o zelador enquanto o local permanece fechado em razão do clima nevoso que impede a abertura do hotel, mas algumas coisas bem estranhas começam a acontecer e provavelmente a conta de gente morta no lugar (que já não é pequena) venha a aumentar.
Essa é uma história bem conhecida em razão do clássico filme de Stanley Kubrick (do qual irei falar mais adiante, goste King ou não), então esse plot já é bem conhecido, por mais que o filme modifique várias questões. Ao começar a leitura esperava acompanhar bem de perto a transformação de Jack de um pai carinhoso com o filho em um doido que irá correr atrás da própria família com um machado (o que não acontece de fato já que no livro ele não usa um machado e sim um martelo de croquet), e o autor até consegue fazer isso bem; o passado da família é bastante explorado na primeira parte do livro e, por mais que para alguns (como o Kubrick) essa exploração aprofundada da bagagem pregressa dos Torrance seja alongada demais ou maçante, é de extrema importância para o peso que os acontecimentos futuros terão. Quando eu lia sobre a relação entre Jack e Danny, como ambos se amavam e gostavam de estar um com o outro, dava um quentinho no coração porque além do fato de Danny ser uma criança extremamente fofa, é uma relação muito bem mostrada e o King soube bem como passar esse sentimento. Não só os sentimentos positivos, mas também os negativos em relação ao casamento completamente fragilizado de Jack e Wendy e como quase não se vê muito amor entre os dois. Antes de todo o terror sobrenatural que envolve os fantasmas do hotel, Stephen busca nos mostrar o terror real e natural envolvendo o vício em bebida, a violência doméstica e a fragilidade de relações que prendem ambas as partes.
Jack é o personagem mais bem explorado da obra, o autor mostra as várias decisões passadas do personagem que fizeram não só ele como também toda a sua família passar por dificuldades. Ao se mudar para o hotel e com o passar dos meses o leitor acompanha as pequenas mudanças em sua mente, sejam em suas falas, pensamentos ou ações. Agora, enquanto eu lia acabei esperando que os fantasmas do hotel tivessem uma influência mais indireta nessas mudanças e as ações de Jack fossem algo que deixassem na dúvida o leitor se o que estava acontecendo era porque o personagem queria fazer ou porque ele devesse fazer, mas o final acabou me decepcionando um pouco já que nas últimas cenas de Jack mais parecessem que ele estava possuído e não sendo influenciado. Ok, isso é uma coisa pessoal do meu gosto e do que eu preferia, mas a questão de Jack ser possuído (o que fica bem mais explícito na adaptação de 1997) me pareceu uma saída meio preguiçosa que não dá um ponto final para a espiral que levava ao fundo do poço pelo qual Jack estava passando.
O hotel em si é um grande personagem dentro da história, com seu passado sendo revelado aos poucos e um clima tão bem construído que consegue transportar o leitor para dentro daqueles corredores psicodélicos, mas não posso deixar de dizer que esperava algo um pouco mais parecido com o que Kubrick fez. Novamente, outra questão de gosto pessoal e construída por cima da adaptação, entretanto, acredito que seja difícil achar um leitor que não quisesse ver mais dos moradores permanentes do Overlook.
A luz no fim do corredor
Agora indo para o protagonista e a quem o título se refere, Danny Torrance é uma das crianças mais adoráveis que já vi nos livros, é impossível não se apaixonar por ele. A questão da “iluminação” é bastante importante no multiverso do King, Danny e Dick Hallorann, um iluminado que também é cozinheiro do hotel e explica a Danny o conceito de iluminação, não são os únicos iluminados que existem e nem seus poderes são o único tipo de iluminação. Iluminação é um dom com o qual a pessoa já nasce com, seja esse dom a telepatia, telecinese, pirocinese, previsões ou um “sexto sentido”.
A iluminação entretanto não se torna o tema principal do livro, o que particularmente eu agradeço, mas é um elemento que se torna essencial para o andamento da história sem parecer forçado ou tão surreal assim. Um detalhe pequeno, entretanto, que não me agradou nem um pouco é quando Wendy descobre a razão do hotel estar querendo matar Danny: o hotel quer se alimentar da iluminação do garotinho, portanto precisa dele e se utiliza do pai como um peão que pode agir no plano físico, Wendy em um surto de perspicácia descobre isso de uma hora para outra e além de forçado foi bastante desnecessário já que várias outras situações deixavam isso claro.
Retornando ao Dick Hallorann, um ponto que eu falei lá na resenha de A Dança da Morte se repete aqui: a presença do magical negro. Para quem não sabe, magical negro é um arquétipo de personagem negro que tem como função servir de mestre e guia para um personagem branco, sem qualquer outra função ou importância, lançando mão de estereótipos étnicos e preconceituosos; é um tropo narrativo bastante utilizado por volta do século XX e que ultimamente tem sido mais debatido. No caso de Hallorann, em suas primeiras cenas, antes de ir para a Califórnia já que o hotel estaria fechado, me parecia que era isso que aconteceria com o personagem, afinal é ele quem ensina a Danny sobre iluminação e como usar melhor os seus poderes; entretanto, quando ele volta ao hotel para salvar Danny e Wendy, ele se torna um herói que consegue tirar a família do prédio antes que ele exploda.
Não significa que o tratamento do personagem na obra seja perfeito. Um problema que me incomodou bastante foi a repetição da palavra “crioulo” em momentos que absolutamente não cabiam. Não que hajam situações que cabem ser racistas, claro que não, mas narrativamente essa palavra pode ser utilizada para mostrar situações racistas e preconceituosas pelas quais personagens negros passam. No caso de O Iluminado, simplesmente não ocorrem essas situações, essa palavra só é repetida para reforçar o fato de que o personagem é negro, ponto. Ele é chamado assim pelo vendedor de legumes que aparentemente é amigo dele, ele é chamado assim por um fantasma do hotel em uma conversa com o Jack em que ele avisa que Dick está chegando, ele é chamado assim brigando com um motorista na estrada, nenhuma das situações se justificam narrativamente a utilização dessa palavra.
Checkout
Por mais que seja um livro que não tenha me agradado por completo ou que não me entregou o que eu esperava, ainda assim foi uma leitura bastante satisfatória e que só começou a me cansar mais para o final. Essa experiência serviu de lição para que eu não crie tanta expectativa assim quando fosse ler um livro muito famoso (a mesma situação já aconteceu comigo mais de uma vez, inclusive). No entanto, uma pergunta que ficou foi: se ele fosse reescrito, o autor mudaria algo? Deixaria mais visual com mais presença dos fantasmas ou se distanciaria mais ainda do legado que a adaptação do Kubrick deixou?
Bônus: um hotel muito revisitado
Depois de terminar o livro busquei, claro, assistir a famosa e polêmica adaptação de Stanley Kubrick, lançada em 1980. Depois de me decepcionar consideravelmente com o livro, a expetativa de um filme mais visual e aterrorizante se utilizando do sobrenatural aumentou. Eis que me decepcionei de novo. É um filme muito interessante e incrivelmente bem produzido, o cenário interno do hotel é ao mesmo tempo claustrofóbico com suas cenas em corredores e espaçoso demais com seus planos amplos e halls gigantescos. Várias coisas da história original foram deixadas de lado no roteiro escrito por Kubrick e Diane Johnson, mas uma mudança que gostei bastante é como Jack aparenta muito mais que está sendo influenciado e deixando de lado a possessão. Entretanto, sou obrigado a concordar com a crítica de King a uma coisa em relação ao personagem de Jack: desde a sua primeira cena, na entrevista de emprego para zelador do Overlook, se vê que ele não é um personagem muito são. Talvez porque o Jack Nicholson tenha cara de doido? Com certeza isso ajuda, mas acaba deixando de lado a transformação da mente de Jack, um dos pontos mais interessantes e presentes dentro do livro e da mensagem que ele passa.
Depois de muito bater o pé e espernear, eis que em 1997 King ganha a sua tão esperada adaptação de O Iluminado que segue o que acontece no livro. Intitulada Stephen King’s The Shining (ele realmente renega de toda maneira possível o filme de Kubrick) é uma minissérie em três partes, cada uma tendo duração de uma hora e meia, que faz poucas mudanças em relação ao material original. Acredito que a mais significativa é a de que Jack nessa versão participa do AA, algo que não acontece no livro e que é um ponto de extrema importância na continuação do livro, Doutor Sono. Achei uma minissérie bem interessante de assistir, os efeitos não são dos melhores, mas se leva em conta o investimento para algo lançado para a TV e o ano em que foi produzido; além disso, fiquei me perguntando se quatro horas e meia eram mesmo necessárias para contar tudo, mas pelo menos ele deixa tudo bem explicado e mostrado. Por último, a cena final é extremamente desnecessária.
Por último, um clássico da nação emo: o clipe de The Kill (Bury Me), do 30 Seconds to Mars. Inspirado no filme de Kubrick, o clipe leva a banda a um hotel parecido com o Overlook da adaptação de 1980 onde os membros encontram coisas bem esquisitas e situações tiradas diretamente do clássico. Assim como o filme, é uma produção audiovisual que te deixa confuso sobre o que diabos está acontecendo e não te dá resposta alguma. Maravilhoso.
❧ O Iluminado (publicado originalmente em 1977)
❧ Stephen King
❧ 520 páginas
❧ Editora Suma
❧ Tradução de Betty Ramos de Albuquerque
❧ ★★★★☆





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