A Cor Púrpura (Alice Walker) - Seus olhos viam púrpura
O Renascimento do Harlem foi um movimento político-cultural que surge logo após a Primeira Guerra Mundial, se estendendo pela década de 1920. De extrema importância para a comunidade negra dos Estados Unidos, esse movimento joga luz na arte e cultura dessa comunidade colocando-a em evidência para o mundo, abrangendo as artes plásticas, a música e a literatura. Para quem quer saber um pouco mais sobre o que aconteceu nesse período e o que levou a esse movimento acontecer, recomendo esse artigo do site Deviante que, além de explicar muito melhor do que eu, também traz alguns exemplos e recomendações de obras que surgiram nesse período.
Ok, mas por que falar sobre o Renascimento do Harlem em uma resenha de um livro sobre uma autora que não é desse movimento?
Em 1937 é publicado Seus Olhos Viam Deus, a obra mais conhecida de Zora Neale Hurston, um dos principais nomes do Renascimento do Harlem e da literatura estadunidense no século XX. Além disso, ela é uma das autoras favoritas de Alice Walker, autora de A Cor Púrpura e primeira mulher negra a ganhar o prêmio Pulitzer de ficção, sendo também uma grande influência para a sua obra.
A cor de Deus
Uma das filhas de uma numerosa família negra no sul dos Estados Unidos durante a primeira metade do século XX, Celie é uma garota que desde o início já te conquista pela força. Abusada pelo pai, ela vê a mãe morrer e a irmã mais nova quase ser casada com um homem bem mais velho, mas no final quem se casa com ele é a própria Celie. Contada em formato de cartas destinadas a Deus, o leitor acompanha a partir daí os anos de vida da protagonista e todas as dificuldades que ela encontra no caminho sendo uma pessoa negra, mas acima disso, sendo uma mulher negra. Amar pessoas, perder pessoas, são dificuldades que todo mundo encontra em algum momento da vida mais de uma vez, mas as dificuldades impostas às mulheres negras naquele período (e que até hoje persistem), em uma sociedade recém saída da escravidão, causam revolta não só à Celie como também ao leitor que ama tanto uma personagem e não pode ajudá-la de forma alguma.
Falei no início sobre Zora Neale pois as dificuldades das mulheres negras no sul dos Estados Unidos durante esse período também é o tema de sua obra mais famosa, Seus Olhos Viam Deus, onde a história de vida da protagonista Janie Crawford e todas as dificuldades que ela encontrou pelo caminho é contada pela própria em uma simples conversa a mesa com uma amiga, onde o leitor facilmente assume o seu lugar. Ambos tratam da mesma temática com uma escrita que traz ao leitor o jeito de falar da comunidade onde a narrativa se passa; não só isso, mas A Cor Púrpura, sendo contado no formato de cartas, traz também os erros gramaticais e sintáticos da protagonista em sua escrita, imergindo ainda mais o leitor dentro daquela história e trazendo ao leitor brasileiro um trabalho primoroso de tradução.
Outro tema muito interessante presente em ambas as obras, mas que em A Cor Púrpura é mais aprofundado por alguns fatores, é a questão do preconceito e da discriminação dentro da própria comunidade com os seus semelhantes. Pelos dois romances se entende que um homem negro pode até sofrer discriminação por pessoas brancas dentro da sociedade, mas essa discriminação é ainda mais forte contra mulheres negras e podendo ser feita também por homens negros, com a negação de direitos, imposição de deveres e impedimentos, tudo em razão do seu gênero. Além de racista, não se pode esquecer que a sociedade daquela época (e que nunca deixou de ser) é extremamente machista e patriarcal resultando em uma fervorosa e afiada prosa mulherista, resultando em obras como as de Hurston e Walker. Entretanto, nem por isso as protagonistas desses dois livros se curvam aos homens de sua vida: elas batalham para conseguirem o que querem, são independentes até onde podem ser e buscam acima de tudo ser o que de fato querem ser.
Se no romance de Hurston não temos personagens secundários tão bem aprofundados ou presentes, Walker nos apresenta personagens tão incríveis quanto a protagonista: Sofia, Nettie, Shug Avery, personagens tão fortes e bem aprofundadas quanto a protagonista e que sem elas A Cor Púrpura não seria a obra prima que é. Representatividade LGBTQ+, questionamentos acerca de Deus e colonização no continente africano, a continuação da prática escravagista mesmo em um país onde ela já foi abolida, tudo isso é trazido para o romance e construído em diálogo com a protagonista, é um livro que não para de te ensinar e mostrar realidades que ainda persistem depois de décadas, não se tornando em momento algum maçante ou arrastado. Cada carta, cada momento é único e necessário, seja para a protagonista, seja para o leitor, seja para a narrativa. A relação de Celie com a irmã Nettie é doce e dolorosa, o leitor sofre junto com a protagonista a ausência e sentimento de perda que permanece durante boa parte do livro; não só isso como também ele sente raiva e carinho por Shug e seu sucessivo ciclo de abandono e retorno.
Sendo contado de maneira epistolar e com uma linguagem dinâmica, foi um livro rápido de ler e que me envolveu; é uma leitura ao mesmo tempo prazerosa e dolorida, mas necessária, tanto para a época em que foi escrita quanto para a atualidade. Um clássico americano que deveria ser leitura obrigatória para todas as pessoas.
Bônus: uma das maiores injustiças do Oscar
Tá, já falei muito dele aqui nessa resenha, mas não custa reforçar a recomendação de Seus Olhos Viam Deus, um clássico tão bom quanto A Cor Púrpura e que muito provavelmente você vai gostar caso tenha gostado do livro de Walker. Outra dica de livro, e essa com uma ligação mais direta com o livro de Walker, é O Segredo da Alegria, publicado bem recentemente pela editora José Olympio, e que traz de volta Tashi, uma personagem de A Cor Púrpura que deixa o leitor com gosto de quero mais.
Agora, como sempre indicando a adaptação cinematográfica, The Color Purple foi lançado em 1985, dirigido por Steven Spielberg e escrito por Menno Meyjes, estrelado por Whoopi Goldberg como Celie, Margaret Avery como Shug Avery, Danny Glover como Albert e Oprah Winfrey (sim, a fucking Oprah Winfrey em seu primeiro papel para o cinema) como Sofia. O filme faz poucas alterações em relação ao material original, deixando uma coisa de lado aqui ou ali, mas uma mudança extremamente bem vinda é o aprofundamento da relação de Shug com o seu pai, que dá ao espectador aquela cena linda em que Shug entra cantando na igreja em que seu pai está ministrando um culto e lá recebe seu perdão. É um filme lindo e incrível de assistir, mesmo tendo duas horas e meia de duração, as atuações são espetaculares e com certeza deve dar uma chance caso tenha gostado do livro.
❧ A Cor Púrpura (publicado originalmente em 1982)
❧ Alice Walker
❧ 336 páginas
❧ Editora José Olympio
❧ Tradução de Betúlia Machado e Maria José Silveira
❧ ★★★★★








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