Bartleby, o escrevente (Herman Melville) - The Office do século XIX
Herman Melville é muito lembrado por ser o autor de um dos maiores romances já escritos na história da literatura, Moby Dick, entretanto, esse é só um dos romances de sua vasta obra. No Brasil, além das edições (lindas, diga-se de passagem) de Moby Dick, temos ainda Jaqueta Branca pela Zahar, outra história robusta que se passa em alto-mar, e várias edições do conto que essa resenha irá abordar: Bartleby, o escrevente: Uma história de Wall Street.
Que absurdo
Antes de entrarmos de fato na narrativa de Melville, é necessário falarmos um pouco sobre um dos conceitos presentes nessa história: o absurdo. Sendo Melville um escritor do século XIX, devemos dar um pequeno pulo no século XX, quando Albert Camus, autor de O Estrangeiro, desenvolveu uma vertente filosófica chamada absurdismo onde afirma que a vida é absurda e o mundo é desprovido de sentido. Bom, a situação mundial e cultural de fato continuam nessa mesma situação onde é difícil de acreditar que certas coisas aconteçam ou foram criadas, mas o ponto é que por mais que esse pensamento tenha sido desenvolvido no século XX ele não é exclusivo desse período, tendo várias obras anteriores ao lançamento de O Mito de Sísifo (obra onde Camus aborda e explicita a tese absurdista), que ocorreu em 1942.
O período de produção de Franz Kafka se encontra nas três primeiras décadas do século XX, ou seja, começa pelo menos 30 anos antes da publicação do ensaio de Camus, mas isso não impede de se ver o pensamento absurdista em seus romances e contos. Em O Processo, escrito durante 1914 e 1915, mas publicado somente em 1925, o protagonista Josef K. é processado sem saber o motivo e por mais que ele corra atrás para descobrir e passando por situações “tragilariantes”, não descobre até o final do romance. Kafka nos traz uma situação comum, mas que não possui sentido algum, se tornando uma bola de neve absurda e ilógica, mostrando um mundo sem sentido e absurdo, assim como o próprio mundo é apontado por Camus.
O bicho-preguiça de Wall Street
Bartleby, o escrevente foi publicado pela primeira vez em 1853 na revista Putnam’s Magazine e depois republicada na antologia The Piazza Tales junto com outras cinco história de Melville, em 1856, trazendo algumas alterações em relação a sua primeira versão. Narrada em primeira pessoa por um advogado sem nome, a narrativa se passa em um escritório situado em Wall Street onde o narrador possui ainda outros três empregados bem peculiares e caricatos. Além desses, ele ainda contrata Bartleby, um jovem bastante prolífico e trabalhador, até que chega o dia em que ele se recusa a trabalhar: o chefe pede que ele faça algo e a única resposta que o mesmo recebe de Bartleby é “Prefiro não”.
Prefiro não é uma escolha interessante de palavras pois ela não indica uma recusa firme ao trabalho, mas mostra que em uma possibilidade (que na verdade não existe já que ele é pago e contratado para trabalhar) de escolha ele prefere e escolhe não trabalhar. Mesmo assim, ele continua indo ao escritório todos os dias, se sentando em sua mesa atrás do biombo, sendo presente, mas não trabalhando. Mesmo após vários incentivos e ameaças do seu chefe, a única resposta que Bartleby dá ao seu superior é Prefiro não, não trabalhando e somente existindo em um espaço que não lhe cabe mais. Além disso, seu rosto agora demonstra uma apatia a qualquer coisa e qualquer pessoa, não que antes ele fosse a pessoa mais calorosa do mundo, mas agora é como se fosse uma casca de uma pessoa, somente um corpo animado e que se mexe, mas sem alma ou vida.
Assim como Kafka, Melville traz ao leitor uma situação (situações, para falar a verdade, já que ao decorrer da narrativa o chefe do escritório se encontra cada vez mais em uma história sem sentido algum) absurda em um contexto simples, divertindo o leitor mesmo que tragédias ocorram no andamento desse curto livro. Além disso, é um livro que te faz pensar sobre o que o autor está querendo mostrar com tudo aquilo: Bartleby é a representação do trabalhador explorado que não vê mais sentido em viver de trabalho? Ou seria uma crítica ao próprio mundo da advocacia? Talvez uma representação da apatia da sociedade em meio a um mundo mecanizado e repetitivo (Bartleby era um escrevente que trabalhava mais especificamente na tarefa de copiar documentos)? O ponto e uma das coisas mais interessantes dessa história é que ela não possui uma interpretação fixa, deixando ao leitor o trabalho de buscar uma resposta para o que estaria acontecendo, sendo uma narrativa que não envelhece com o passar dos séculos se mantendo atual e discutida mesmo nos dias de hoje. Se você ler Bartleby com certeza vai ter um entendimento diferente do que eu tive ou do que a pessoa X teve e não é essa uma das principais graças da literatura? O levantamento de debates e opiniões acerca de uma obra onde o leitor coloca não só seus olhos, mas também a sua própria vivência e o mundo que o rodeia para buscar entender o que aquele monte de palavras jogadas em uma ordem lógica (às vezes não) quer dizer.
Existem várias edições no mercado desse conto de Melville, mas a que eu escolhi para fazer a leitura foi a da editora Autêntica e que faz parte da coleção Mimo, atualmente disponível no Kindle Unlimited. É uma edição bilíngue trazendo a versão original e uma tradução muito boa e competente junto com notas sobre alguns elementos da história que podem ajudar num melhor entendimento, afinal, Melville colocou vários pequenos detalhes que não trazem uma explicação dentro da própria história, necessitando de um conhecimento externo para que se entenda o porquê daquela palavra ou referência específica. Além disso, essa edição traz ainda ilustrações de Javier Zabala q trazem toda uma atmosfera distorcida e estranha para a leitura, imergindo ainda mais o leitor na narrativa. De fato, é um mimo.
A recomendação final, além de Bartleby, claro, fica para as obras citadas acima: O Mito de Sísifo, para quem quer entender um pouco mais do absurdismo, e O Processo, que é um pouco mais complicado: eu não gostei desse livro, até hoje foi uma das leituras mais chatas que já fiz em toda a minha vida e se eu recomendar isso para alguém provavelmente é um sinal de que não gosto dessa pessoa, mas acredito que possa funcionar melhor para outras pessoas do que funcionou (ou não funcionou) para mim. Além dessas, fica também a recomendação de O Estrangeiro, obra mais conhecida de Camus e que também traz uma situação corriqueira e comum em meio a um mundo absurdo e sem lógica.
❧ Bartleby, o escrevente: Uma história de Wall Street (publicado originalmente em 1853)
❧ Herman Melville
❧ 152 páginas
❧ Editora Autêntica
❧ Tradução de Tomaz Tadeu
❧ Ilustrações de Javier Zabala
❧ ★★★★1/2




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