A Longa Marcha (Stephen King) - Nós já chegamos?



Richard Bachman foi um pseudônimo que Stephen King começou a usar a partir de 1977 com a publicação de Fúria (que deixou de ser publicado a pedido do próprio autor após ser várias vezes relacionado à massacres e tiroteios em escolas dos Estados Unidos) pois normalmente um autor se limita a publicar um livro por ano e quem conhece um pouco do King sabe que isso não consegue ser aplicado a ele. Então, para não saturar o mercado com a quantidade enorme de livros que ele desejava publicar por ano, optou por publicar alguns dos seus livros sob esse nome, mas além disso ele também queria saber se o sucesso que tinha alcançado até ali foi questão de sorte ou talento. Veja bem, depois do lançamento de Carrie em 1974 cada livro que ele lançava era um sucesso atrás do outro, mas até onde isso se devia ao talento dele de ser um bom autor ou do peso que seu nome carregava e carrega até hoje? Não é à toa que quando ele recomenda algum livro publicado por um autor não tão conhecido assim a editora já faz questão de trazer esse blurb na capa.

Voltando ao nosso querido Richard, por esse nome King optou por lançar alguns livros um tanto quanto mais perturbadores e loucos (e isso vindo do homem que escreveu livros como O Iluminado, Cujo e a saga da Torre Negra é de deixar alguém de orelha em pé), o próprio Fúria é um suspense psicológico que fala de tiroteio em escola, não é pra estômagos fracos. A segunda publicação por esse pseudônimo ocorre então em 1979, mesmo ano em que ele publica A Zona Morta, com a distopia A Longa Marcha, um dos seus livros mais interessantes e enigmáticos, ao mesmo tempo que claro sobre o que fala.

Romance literário e de entretenimento

Antes de falar sobre esse livro mais que esquisito, preciso explicar primeiro dois conceitos: romance literário e romance de entretenimento. De forma geral, o romance de entretenimento é aquele mais voltado para o mercado de massa e popular, por exemplo romances de suspense, romances românticos, de terror, fantasia, ficção científica. De acordo com a Publishnews:

Ficção Literária, aquela em que a forma como o romance é escrito é o grande destaque da obra, e Ficção Comercial, em que o destaque está na arquitetura do romance, no enredo, na história.

Não tenho certeza se concordo quanto à parte de ficção literária, se pegarmos por exemplo uma publicação mais recente da Intrínseca, Marketing do Amor, é um romance LGBTQ+ jovem, mas que o enfoque do livro e da própria divulgação que a editora fez é na forma em que ele é contato, por meio de mensagens, emails e outros meios além da prosa cotidiana que encontramos em outros livros. O próprio conceito de literatura é algo vago e sem definição clara desde que o termo foi criado (estudantes de letras sabem como a pergunta “o que é literatura” é uma coisa complicada de se fazer), mas para essa resenha vamos simplificar da seguinte forma: romance de entretenimento é aquele mais voltado para o mercado e venda com uma história que pode de certa forma ser complexa e profunda, mas que é voltada para um maior público e um grande número de vendas; já o romance literário é aquele mais complexo que provavelmente daqui há algumas décadas vai ser estudado em faculdades e escolas e blá blá blá. Para mim tudo é a mesma coisa, livro é livro, o que muda é a forma em que ele é escrito, a finalidade e a própria experiência de leitura. Eu posso não me divertir lendo Meg Cabot ou Colleen Hoover, grandes nomes do mercado literário com inúmeros romances já publicados, mas eu me racho de rir lendo Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Orgulho e Preconceito.

A estrada mais vigiada do país

Agora sim indo de fato para o livro de Bachman, A Longa Marcha é narrado em terceira pessoa do ponto de vista de Ray Garraty, um jovem adolescente do Maine (como eles demoraram anos para perceber que Bachman era o King? Eu não sei) que se inscreve para participar da Longa Marcha, um torneio anual organizado pelo governo e pelos militares onde cem jovens garotos caminham sem parar por uma longa avenida dos Estados Unidos até que só reste um; cada participante tem direito à três advertências, na quarta ele já é eliminado com um tiro ou mais caso seja necessário. Mas porque se inscrever numa coisa tão maluca? O grande prêmio que o vencedor leva no final: o que ele desejar. Simples.

A história já começa logo do ponto em que a Marcha está prestes a começar e o leitor acompanha Ray nessa jornada de autodescoberta e descoberta do mundo, se relacionando brevemente com os outros participantes e vendo os horrores que acontecem com eles. Vendo essa sinopse até parece que vai ser aquele suspense distópico com uma pegada de Jogos Vorazes, mas o ponto (e o porquê de eu ter falado do romance de entretenimento e romance literário) é que esse não é um livro onde o foco se encontra no torneio e no suspense que é criado, mas sim nas descobertas sobre a vida que o protagonista faz e o significado por trás disso tudo. Enquanto eu lia e acompanhava lentamente (em alguns momentos esse livro se torna bem arrastado) não conseguia parar de pensar no Apanhador no Campo de Centeio, ambos são livros em que o foco da história se encontra nas mudanças pelas quais os protagonistas passam durante uma jornada relativamente curta, cheia de significados e simbolismos, mas que no final tudo se traduz em três simples palavras: é a vida.

A Marcha que Ray está fazendo na verdade é a marcha da sua vida. Ele perde pessoas no caminho, ele conhece pessoas, ele vê pessoas que nem conhecia morrendo, mas mesmo assim ele continua seguindo vivo até o momento em que sua hora chegar. Suas reflexões sobre a infância, seus atos, sua descoberta sexual e desejos que sente da namorada distante que não pode estar com ele ali, tudo isso é o processo de amadurecimento pelo qual não só ele, mas toda pessoa passa durante a vida. O final pode ser bastante confuso para alguns (eu tive que pesquisar outras opiniões no Reddit sobre para tentar entender alguma coisa): após todos os outros 99 participantes terem sido eliminados ou simplesmente morrerem, o Major, quem comanda a Longa Marcha, aparece para dar o prêmio a Ray, mas ele não para de caminhar e segue em frente sem parar. E pronto, é um final bem decepcionante para quem esperava algo mais revelador ou explosivo (como eu esperava), mas é um final poético e cheio de significado.

A Longa Marcha foi o primeiro romance escrito por King quando ainda era somente um calouro na universidade do Maine, mas não foi o seu primeiro livro publicado, o que foi uma escolha bastante acertada. Esse não é um livro para qualquer um e mesmo para o público a qual ele é destinado pode ser bastante insatisfatório. Entende-se que essa é uma realidade distópica com um governo totalitário comandado pelos militares, aqui ou ali, durante os diálogos, são deixadas pistas sobre o que aconteceu naquela versão distorcida dos Estados Unidos, mas nada é de fato explicado e tá tudo bem porque não é de fato sobre isso que o livro fala ou aborda, só que fica aquele gosto amargo na boca de querer saber mais sobre o que aconteceu. Na classificação feita atualmente, A Longa Marcha é um romance literário que se vende como um romance de entretenimento, podendo ser uma grande descoberta para quem for adentrar nessa leitura, mas que necessita de cautela e alguns avisos para não haver uma grande decepção que leve o leitor a jogar o livro contra a parede.

Para quem já conhece o autor e teve contato com outras obras mais conhecidas dele, A Longa Marcha é uma boa recomendação pois traz um novo lado de King, uma coisa mais profunda e psicológica que busca mais tocar a mente do leitor do que assustar ou causar tensão. Não gostei tanto assim quanto esperava gostar, mas acredito que tenha sido por causa das expectativas que criei em razão da sinopse e do que já conhecia do autor, no entanto, esse livro me deixou bem pilhado para ler os outros sob o nome de Bachman (já li Fúria e A Maldição, foram leituras bem interessantes, mas amargas), então espero ler A Auto-estrada em breve, mas preciso de um tempo ainda para adentrar em algo tão psicológico e deprimente como esse livro foi.


❧ A Longa Marcha (publicado originalmente em 1979)

❧ Stephen King (sob o pseudônimo de Richard Bachman)

❧ 288 páginas

❧ Editora Suma

❧ Tradução de Regiane Winarski

❧ ★★★1/2

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