A Zona Morta (Stephen King) - Ironicamente premonitório


Demorei algum tempo para voltar a ler o King desde o último livro dele que li, A Última Missão de Gwendy (três meses, até eu tô surpreso), então tomei coragem de pegar A Zona da Morte sem muita pretensão, só esperando me divertir com um clássico do rei. E que livro, meus amores, QUE LIVRO.

A voz do anjo sussurrou no meu ouvido…

Johnny Smith é um jovem adulto comum: formado como professor, ele dá aulas em um colégio comum em uma cidade comum e começou a sair com uma garota comum, mas de beleza estonteante. Tudo é muito comum. Até que deixa de ser.

Quando tinha por volta de sete ou oito anos, Johnny sofreu um acidente em um lago congelado: enquanto patinava, ele levou um disco de hóquei direto na cabeça que o deixou inconsciente por um tempo, mas logo depois acordou e estava tudo bem, só com um galo enorme e com um estranho caso de “premonição”, como se ele soubesse de uma coisa que não podia saber, coisa boba, só mais uma terça comum no Kingomniverso. Voltando para o presente, ele vai com Sarah, a garota com quem ele estava saindo, até um festival de cidade pequena e, quando estavam perto de voltar para o apartamento de Sarah, Johnny decide jogar na roda da fortuna. E é aí que a desgraça começa a acontecer.

Ele ganha. E ganha e ganha e ganha, até sair da barraca com mais de 500 dólares, muito dinheiro de uma simples barraquinha de festival local onde ele começou apostando centavos. Tendo que voltar mais cedo pois Sarah estava passando mal, Johnny a deixa no apartamento dela e volta para casa de táxi. Ou pelo menos tenta já que ele sofre um acidente que o deixa em coma durante quatro anos e meio.

Quando todo mundo já tinha desistido que ele iria acordar durante esses quase cinco anos, menos sua mãe fanaticamente religiosa, em um dia comum ele acorda, mas com uma peculiaridade: ele têm “visões” quando uma pessoa toca nele. Não necessariamente são visões sobre o futuro da pessoa, algumas vezes são, mas também podem ser sobre o presente ou o passado, mas às vezes, também, ele não vê nada, não é uma coisa regular ou fixa. À medida que esse poder que ele não pediu para ter vai se tornando mais conhecido, sua vida vai virando um inferno, desde pessoas lhe pedindo para ver coisas até o recebimento cartas de ódio. Essa é a premissa básica de A Zona Morta, pode parecer um livro de ficção científica como qualquer outro, e que inclusive já até virou episódio paródia de Os Simpsons, mas o King não parou por aí e conseguiu criar uma obra prima.

Stephen King vidente?

Por mais que A Zona Morta seja mais lembrado por causa dessa questão sobrenatural das visões que Johnny tem, a nota do autor que antecede o prólogo dá uma dica do que realmente esse livro fala: contexto histórico dos Estados Unidos durante a década de 1970. Stephen King já avisa que, por mais que os personagens sejam fictícios, a história tem como pano de fundo os anos 1970 e algumas figuras importantes que aparecem são reais, como o ex-presidente estadunidense Jimmy Carter. Retomando, por mais que haja toda aquela questão sobrenatural das visões, por vezes isso é deixado mais como um elemento da narrativa, mas não como o foco principal, não é sobre isso que o autor quer falar. King na verdade quer falar sobre os Estados Unidos na década de 1970 e o quão louco esses anos são, mas ele não previu que esse romance tinha traços premonitórios reais e não somente ficcionais.

A década de 1970 foi um período conturbado para o mundo todo, mas os Estados Unidos foi um dos países onde mudanças mais ocorreram (até porque muitos problemas mundiais que estavam acontecendo naquele momento eram por culpa deles e tudo o que vai, volta). O cansaço que a Guerra do Vietnã já estava causando em toda a população dos EUA, especialmente entre os jovens que eram mandados como carne de abate para o outro lado do mundo, a polêmica do Watergate que levou à renúncia do Richard Nixon, um dos piores presidentes que aquele cabaré já teve, a alta do petróleo, insatisfação da população, tudo isso o King soube trazer e retratar em A Zona Morta de maneira maestral.

Um dos principais vilões desse livro é Greg Stillson, um candidato à governador independente (não filiado ao partido democrata ou republicano) que, para quem passou pelos últimos quatro anos no Brasil, precisa de um alerta de gatilho antes toda vez que ele aparece. Stillson é aquele tipo de candidato que, para ser eleito, promete as coisas mais impossíveis aos eleitores caso vença, como mandar para o espaço todo o lixo ou colocar para fora a corrupção do governo. Bom, essa história de salvador da pátria a gente já ouviu bem várias vezes…

O King nesse livro trouxe uma visão da política mais assustadora do que qualquer monstro que ele já criou porque é uma coisa que infelizmente acontece: um candidato não qualificado que tem propostas impossíveis e tenta se garantir no apelo popular de uma sociedade cansada da situação ruim que já acontecia antes, mas que só vai piorar caso esse candidato consiga ser eleito. Essa situação infelizmente não foi uma coisa que aconteceu somente no Brasil, afinal, nos últimos tempos se observou um aumento da extrema direita (uma vertente política que é a melhor representação desse tipo de candidato explicado anteriormente) em todo o mundo e em vários lugares esses partidos venceram, como Donald Trump ou o inominável do ex-presidente que foi eleito em 2018 e que me recuso a simplesmente citar o nome aqui. A partir do ponto em que a história de A Zona Morta se volta para a ascensão de Stillson e como Smith vai ou não tentar impedi-lo, em determinadas partes o autor mostra decisões políticas que mostram como a uma situação assustadora vai se formando. Como disse Padmé Amidala em Star Wars - Episódio III: A Vingança dos Sith, “ é assim que morre a democracia, com uma salva de palmas”.

Entretanto, nem só da conturbada situação política, interna ou externa, é mostrada, afinal, os anos 1970 foram muito mais à fundo nas loucuras. O crescimento do fanatismo religioso, juntamente com o aumento de seitas que relacionam o cristianismo com o arrebatamento feito por naves espaciais, é um dos pontos mais tristes da história pois envolve a mãe de Johnny, uma mulher que vai se sacrificar até onde puder por uma causa que todo mundo que é perdida, menos ela. Além disso, até mesmo um serial killer estrangulador e que violenta corpos, como os serial killers que ficaram famosos e que pareciam surgir a rodo durante as décadas de 1970 e 1980, está presente na narrativa. A Zona Morta não é só um livro de suspense com ficção científica, é um livro que busca representar o pior horror, o horror real, que aconteceu, durante toda uma década. É um livro sofrido com um final triste, em alguns momentos chega a ser maçante já que muita coisa acontece, mas é uma leitura que se mostra necessária, não só para a época em que foi escrita como também para a atualidade. Sinceramente, seja na ficção ou na realidade, parece que os erros sempre vão se repetir, mas (ou pelo menos assim eu espero) sempre haverá aqueles que lutarão e até mesmo se sacrificarão para manter a liberdade.

Bônus: mais um filme do King pra lista

Poucos anos depois, em 1983, foi lançado o filme que adapta essa obra do King, nos Estados Unidos tendo o mesmo nome do livro, mas aqui no Brasil sendo trazido como Na Hora da Zona Morta, dirigido por David Cronenberg. Estrelado por por Christopher Walken como Johnny Smith e Martin Sheen como Gregory Stillson, o filme segue bem a premissa da obra original fazendo aqui e ali alguns cortes para deixar a narrativa com uma linguagem mais cinematográfica, voltando o foco muito mais para o suspense. Achei que é um bom filme e me conquista mais por ser um filme dos anos 1980 do que de fato por ser uma adaptação de um livro que gostei muito, afinal, não dá para passar para o cinema a mesma sensação que um livro passa para o leitor (ainda mais com todas as partes mais pesadas que o King coloca como o assassinato e violação do cadáver de uma criança, em hipótese alguma eles colocariam isso em um filme para um grande público) e eu não senti nem metade da tensão que senti enquanto lia o livro. Muitas das questões trazidas pelo autor são colocadas em momentos de narração e, sendo o filme temporalmente mais adiantado em relação ao livro, não cabe mais colocar algumas questões históricas dentro do filme. Ainda assim é um filme bem produzido, com um elenco ótimo e que mostra bem os acontecimentos concretos que acontecem no livro. Além disso, houve ainda entre 2002 e 2007 a série The Dead Zone, trazida para o Brasil como O Vidente. Foram produzidos 80 episódios divididos em 6 temporadas, mas infelizmente a série foi cancelada sem ter um final; por causa disso também decidi não assistir (e também porque estou ocupado demais vendo South Park).


❧ A Zona Morta (publicado originalmente em 1979)

❧ Stephen King

❧ 480 páginas

❧ Editora Suma

❧ Tradução de Maria Molina

❧ 5★

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