Filha da Fortuna (Isabel Allende)

 

Topa tudo por um macho

Segundo romance de Isabel Allende que leio e que adiei simplesmente por medo de que fosse uma leitura maçante, Filha da Fortuna foi uma das maiores surpresas do mês, ainda mais com um livro que eu mal tinha ouvido falar na vida. Meu medo tinha seus fundamentos? Sim, e antes de pegar um outro livro da autora acredito que esse medo sempre estará lá, espreitando como uma vilã de novela mexicana só esperando para dar o bote, mas uma das coisas que aprendi durante essa leitura é não permitir que isso me impeça de começar uma leitura que muito provavelmente vai mudar a minha vida.

Eu não gosto da corrida do ouro…

Começando no Chile, em meados do século XIX, Filha da Fortuna narra a épica, odisseica e transformadora, tanto para o leitor quanto para a protagonista, trajetória de Eliza Sommers, uma garota deixada na porta da opulenta residência dos Sommers, uma família inglesa rica que mora atualmente no Chile pois as riquezas do país, juntamente com as questões de importação, eram financeiramente favoráveis para os três irmãos. Mas será que é só por isso mesmo? Uma coisa que deve ficar clara na mente de quem começar a ler esse livro é que pessoas guardam segredos, às vezes por anos, e vez ou outra esses segredos vêm à tona nos momentos mais inesperados.

Voltando ao foco da narrativa, Eliza é adotada como membra da família, recebendo o sobrenome e satisfazendo o desejo que Rose Sommers tinha de ser mãe, mas que nunca conseguiu realizar. Além de Rose e Eliza, os Sommers ainda são formados por Jeremy, o irmão mais velho que administra as importações e exportações que fazem parte do negócio da família, e John, capitão do navio que leva esses produtos para o pequeno vilarejo onde moram os Sommers, Valparaiso. Eliza recebeu tudo do bom e do melhor, desde as roupas até a sua educação, mesmo que ela preferisse ficar na cozinha com a criada, Mama Fresia, onde lá ela desenvolvia suas habilidades culinárias. Mas, como toda boa mocinha de um romance de época, Eliza não vai se ater aos padrões do que se espera de uma moça da sua idade, sendo educada para ser uma boa esposa que se casará com um homem que mal conhece, mas que a sustentará pelo resto da vida, não. Ela quer muito mais.

É quase chegando à maturidade (e após uma tentativa fracassada por parte de Rose de tentar juntar Eliza com um jovem e belo marinheiro) que a protagonista de Filha da Fortuna conhece Joaquin Andieta, um jovem trabalhador de poucas posses. Os dois se apaixonam ardentemente e logo criam planos loucos para manter firme esse amor proibido, mas Joaquin sabe que nunca daria certo, não com o poder aquisitivo que tem agora, e então decide fugir para San Francisco que está fervendo com a febre do ouro. Eliza, claramente sem muita noção na cabeça, decide também fugir para a Califórnia clandestinamente em um navio para encontrar o que ela acredita ser o amor da sua vida (sendo esse o primeiro cara por quem ela se apaixonou, deixando claro), mesmo que para isso ela tenha que largar a sua amada família. Para colocar em prática esse plano absurdo, ela conta com a ajuda de Tao Chi’en, um cozinheiro chinês que veio na última viagem de John e que relutantemente irá cuidar de Eliza numa viagem que não vai ser nada fácil para os dois.

Tudo no seu tempo

Essa é a premissa de Filha da Fortuna, mas tudo isso não é algo que cabe nas primeiras cinquenta ou cem páginas, pelo contrário, Isabel Allende leva o tempo que for necessário para contar essa história e as histórias passadas de cada personagem, que deixam o leitor ansioso para saber como tudo irá terminar, mesmo que para isso ele tenha que passar umas cinquenta páginas só lendo sobre o passado do personagem tal. O principal medo que eu tinha antes de ler esse livro é que ele fosse um pouco maçante, assim como foi A Casa dos Espíritos, mas, por mais que não seja um livro rápido e que tenha levado um certo tempo para que eu me sentisse de fato imerso dentro da narrativa, acho que essa leitura foi até mais fluida do que a do primeiro romance que li da autora. Um ponto muito positivo desse romance é como ele te surpreende em vários momentos com coisas que você não esperava, como os caminhos pelo qual a relação entre Eliza e Tao irão seguir ou a própria origem da protagonista, um ponto que pelo início do livro não parece ser algo importante, mas que mais lá para a frente irá fazer muito sentido. É um livro que, assim como A Casa dos Espíritos, te faz ler no tempo que a autora quer e não no seu, mas só assim você terá uma experiência de fato prazerosa nessa leitura.

Além disso, outro ponto de extrema importância desse romance de Allende é aquilo que, pelo o que eu andei lendo, parece ser a marca registrada da autora: as questões históricas. Como eu já disse anteriormente, Joaquin parte para San Francisco em busca de fazer fortuna com o ouro que, de acordo com os relatos que chegavam até o Chile, brotava do chão, sendo então a febre do ouro no oeste estadunidense o núcleo histórico deste livro, mas não o único. O personagem (adorável, diga-se de passagem) de Tao vem de uma China castigada e conquistada pelos colonizadores ingleses que chegaram em uma sociedade mais antiga do que os próprios ingleses (como é dito mais de uma vez durante a narrativa) e ocupou seu país como se fossem donos do mundo. Além da China, há ainda a questão da colonização dos países sul-americanos, cujo os povos nativos foram massacrados e catequizados contra a própria vontade pelos colonos. Portanto, uma discussão que está presente durante todo o livro é a ocupação: a ocupação dos garimpeiros e mineiros em San Francisco e na Califórnia; a ocupação dos ingleses na China e dos colonos no Chile. Além disso, Allende mostra que acontecimentos históricos não estão isolados, seja geograficamente ou temporalmente, pois um dos grandes fatores para o crescimento de São Francisco foi justamente a questão da imigração não só de povos sul americanos como também de asiáticos, em especial os chineses que deixavam a China justamente por sua ocupação. Não à toa surge uma região em São Francisco justamente ocupada por chineses, Chinatown, que é bastante importante para a trajetória de Eliza.

Quando o romance entra na fase em que se passa na Califórnia, acompanhando Eliza e Tao começando uma vida em um país que não conhecem, mas que parece ser o lugar ideal para um recomeço, a narrativa começou a me parecer algo no estilo de velho oeste. Enquanto eu lia não conseguia parar de pensar nos cenários de Red Dead Redemption 2, um jogo que se passa no final do período do velho oeste, mas que ainda mostra como o processo de colonização ainda está em andamento no final do século XIX. Uma gangue de bandidos sendo caçada pelo xerife, conflitos com mexicanos e povos nativos, saloons, o surgimento de pequenos povoados no meio do nada, tudo isso me levou a um gênero que tive pouquíssimo contato, mas que me encanta pelos visuais e ação toda vez que me deparo com ele.

Garota conhece o mundo

Filha da Fortuna é uma história sobre busca e crescimento. Eliza pode até partir para os Estados Unidos em busca de macho (que nem valia muito a pena), mas não é isso que ela irá encontrar, e sim algo mais importante: Eliza encontra a si própria. Começando uma nova vida, ela vai precisar se sustentar, seja sozinha ou com a ajuda de Tao, mas nesse meio tempo, e ainda enquanto busca por Joaquin, Eliza irá se perder ao ponto de nem se reconhecer mais, sem saber quem na verdade ela é em determinado ponto da vida e para retomar o rumo de sua vida ela terá que se reencontrar. Mesmo que a protagonista seja Eliza, não é somente nela que a história foca já que Allende se utiliza de muitas páginas para também contar a história de Tao, de como ele cresceu, se encontrou, se perdeu e se reencontrou em um país que não conhecia. Ainda em relação ao nosso querido chinês, é nesse personagem que Allende insere o realismo mágico que é tão marcante em sua obra, quando Tao consegue se comunicar com o espírito de sua falecida esposa. Caso queira saber um pouco mais sobre o realismo mágico, já falei sobre nessa resenha de A Casa dos Espíritos, o primeiro romance de Isabel Allende e que já em sua estreia foi um grande fenômeno.

Por mais que a escrita de Allende dê um pouco de medo em alguns, com muitos parágrafos de narração, alguns chegando até mesmo a 3 páginas de tamanho, e poucas falas, esse é um livro que se mostra necessário para quem gosta de romances históricos e essencial para quem quer saber um pouco mais sobre a febre do ouro que foi um dos pontos mais importantes da história da colonização dos Estados Unidos. Um livro forte que mostra as opiniões da autora não só sobre a história da colonização como também das situações em que as mulheres foram colocadas ao longo dos séculos, abordando não somente um continente ou um fato histórico, mas sim todo um escopo que mostra como sociedades e países estão estão intrinsecamente conectados de uma forma ou de outra. Para não dizer que tudo foi flores, achei o final um pouco anti climático, deixando muitas pontas soltas, mas depois descobri que na verdade é porque o livro possui uma continuação! Retrato em Sépia, publicado pouco tempo depois de Filha da Fortuna, narra a história dos descendentes de Eliza e isso é tudo o que eu sei sobre esse livro, ainda não sei se vou ler ele ainda esse ano, mas com certeza está na lista dos próximos que quero ler da autora.


❧ Filha da Fortuna (publicado originalmente em 1998)

❧ Isabel Allende

❧ 442 páginas

❧ Editora Bertrand Brasil

❧ Tradução de Mario Pontes

❧ 4★

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