Sacrifícios Humanos (María Fernanda Ampuero) - Traumas leves e tênis



É muito louco quando você simplesmente ganha o sorteio de um livro sem nem saber sobre o que o que ele fala e nunca nem ouviu falar da autora, ele simplesmente cai no seu colo, mas então, em um dia qualquer, você o pega para ler e descobre que é uma obra prima. Foi isso que aconteceu comigo ao ganhar Sacrifícios Humanos no sorteio de uma palestra onde eu participo como membro da comissão organizadora (juro que não houve falcatrua nesse sorteio!).

Cada família infeliz é infeliz à sua maneira

María Fernanda Ampuero é uma autora equatoriana que publicou o seu primeiro livro de ficção, Rinha de Galos (também publicado aqui no Brasil pela editora Moinhos), em 2018 e logo se tornou aclamado pela crítica, entrando na lista de melhores livros do ano no The New York Times. Rinha de Galos também é uma coletânea de contos, assim como o livro que eu vou falar mais a frente nessa resenha, mas infelizmente (e por enquanto!) eu ainda não li esse livro, entretanto, será uma leitura feita ainda esse ano e que já estou bastante ansioso para faze-la.

Após essa publicação mais do que bem sucedida, em 2021 ela publicou seu segundo livro de contos, Sacrifícios Humanos, que eu não esperava que fosse um livro lido neste ano já que eu nem sabia da existência dele e foi uma leitura mais que bem vinda. Só pelo texto da orelha eu já imaginava que seriam contos que abordariam algumas nuances do horror e do suspense em histórias de poucas páginas, fora isso, eu não sabia mais de nada, mas só por serem contos sombrios de uma autora sul-americana eu já fiquei beeeem ansioso. Então eu peguei ele para ler alguns dias depois de ter ganhado, estava precisando de uma leitura mais rápida antes de começar A Zona Morta e contos sempre caem bem quando eu preciso de algo assim, logo Sacrifícios Humanos seria a escolha ideal. E foi.

Logo no primeiro conto eu já me deparei com o horror social pelo qual mulheres latinas imigrantes passam durante o dia a dia: o abuso de seus chefes em trabalhos que elas conseguem em países estrangeiros, a ameaça constante da irregularidade de documentos que rodeia essas mulheres como uma nuvem negra ou um bando de urubus prontos para se alimentarem do que restar da carcaça delas, além dos trabalhos irregulares e que são a única opção que essas mulheres possuem em um país onde elas mal sabem se comunicar. A protagonista do primeiro conto, precisando mandar dinheiro para a família e para pagar o próprio aluguel, aceita escrever a história de um homem estranho em uma cidade isolada nesse novo país que ela não consegue chamar de lar. Lá, com o medo de nunca mais retornar para a sua casa nem sair da casa do seu contratante, ela se depara com um horror indescritível onde, dependendo de como a situação se encaminhe, a morte é a melhor saída para ela. É o maior conto do livro, com cerca de vinte páginas (os outros variam entre cinco e quinze), é uma história que possui mais narração do que falas, mas nada disso impediu ele de ser uma leitura dinâmica e rápida, e isso é uma coisa que acontece não somente nesse conto. A oitava história de Sacrifícios Humanos, Piedade, é todo contado em um parágrafo só de cinco páginas, completamente narrado por uma empregada devota ao filho da sua patroa e foi uma leitura que concluí em pouquíssimos minutos. Ampuero tem uma dinamicidade na maneira de contar histórias que me conquistou por completo: ela se utiliza do gótico contemporâneo, tendo como principal fator aterrorizante o horror social, o pior tipo de horror porque ele é real, não se limitando à maneira de só narração ou enchendo sua história de falas. O nono conto, Sacrifícios, é construído em cima do diálogo entre um casal perdido no estacionamento do shopping e que está passando por muitas dificuldades, tendo somente duas linhas onde o narrador fala algo.

É um livro pesado onde serão abordados temas como abuso sexual, pedofilia e violência doméstica, não é um livro para qualquer um e deixou até mesmo a mim, uma pessoa com estômago forte e acostumada com narrativas de terror, desconfortável. Ainda assim, é uma leitura que se mostra necessária pois as cenas mostradas pela autora não são, em sua maioria, histórias fantásticas ou surreais, são cenas horríveis que milhares de mulheres passam todos os dias. Mesmo nos contos “mais leves” onde uma violência não é feita diretamente a uma pessoa, como por exemplo no conto Sanguessugas onde é contado a relação complicada entre um grupo de crianças e uma criança superprotegida pela mãe e que aparenta ter nascido com alguma deficiência mental, a vida da mãe de família é retratada como uma coisa complicada onde ela tem que se submeter a ir até a casa de uma mulher desagradável só para poder sair de casa. Já no conto Assobio a história da mãe da narradora-personagem é contada desde a sua infância, onde, durante o tempo que passou com a sua avó, ela era uma garota livre e feliz, mas que foi se tornando cada vez mais limitada e contida pelas pessoas ao seu redor à medida que crescia. Cada conto presente nesse curto livro é único e me impactou de uma forma diferente, alguns mais do que outros, mas ainda assim foi uma leitura que me atingiu como um punhal sendo lançado diretamente contra o meu peito. É um livro que se alguém me pedir recomendação de contos de terror ou contos mais pesados, que façam a pessoa refletir, esse com certeza é o primeiro título que virá à minha cabeça.


❧ Sacrifícios Humanos (publicado originalmente em 2021)

❧ María Fernanda Ampuero

❧ 120 páginas

❧ Editora Moinhos

❧ Tradução de Silvia Massimini Felix

❧ 4,5★

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