Úrsula (Maria Firmina dos Reis) - Tesouros perdidos, acadêmicos que se acham

Existe um fato muito triste em relação ao mundo literário: livros se perdem. Até mesmo Shakespeare entra nessa longa lista de obras que foram perdidas durante os séculos e esse fenômeno pode acontecer por diversos motivos, seja porque as poucas edições que se tinham, digamos, no século XIII foram perdidas ou queimadas e não haviam mais cópias ou porque simplesmente não ocorreu uma busca por retrazer uma obra do século XIX de volta algum tempo depois. Na literatura brasileira temos dois casos bem interessantes: Casa Velha, de Machado de Assis, e Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, as quais ambas iremos discutir um pouco mais à frente.

Água + açúcar = romance

Primeiramente, é bom explicar um pouco do contexto histórico e literário da época em que Maria Firmina dos Reis estava na ativa como escritora. O movimento artístico do Romantismo tem início nas últimas décadas do século XVIII na Europa tendo como principais características as seguintes: subjetivismo que faz com que eu lírico (ou protagonista do romance) se volte para dentro de si mesmo, um egocentrismo, onde só ele importa; nacionalismo que se manifesta de diferentes maneiras em cada país, seja no retorno do medievalismo em algumas obras europeias ou seja na exaltação de um país jovem como no caso do Brasil; idealização da mulher, com ela sendo algo puro e quase inalcançável que fica mais forte ainda com o sentimentalismo exacerbado do eu lírico/protagonista.

Voltando um pouco para o tópico do nacionalismo, como o Brasil não teve um período medieval e, consequentemente, não teve cavaleiros e heróis como o Rei Arthur, por exemplo, o autor romântico brasileiro precisa recorrer a um novo tipo de pessoa para que seja o símbolo nacional, um herói que sirva de modelo para os leitores, e quem seria mais brasileiro para esse papel do que os povos nativos? A partir disso se tem um movimento indianista na literatura brasileira do século XIX, onde os índios tomam o protagonismo das obras, tanto em prosa quanto em verso, e disso surgem alguns títulos como o poema épico de Gonçalves Dias, I-Juca-Pirama (1851), e os romances indianistas de José de Alencar, como Iracema (1865), O Guarani (1857) e Ubirajara (1874).

Entretanto, o Romantismo brasileiro não se resume somente às obras indianistas pois na verdade ela se divide em três gerações. A primeira é a indianista, também chamada de nacionalista, que além de ter o índio como figura heroica, também tinha o objetivo de exaltar a nação por meio da sua exuberante flora e fauna diversa, construindo assim uma identidade nacional a partir dos elementos nativos do país, juntamente com os acontecimentos históricos e os seus heróis. A segunda é a geração do ultrarromantismo, também chamada de Mal do Século por ser aquela em que os sentimentos se encontram com mais força, especialmente aqueles sentimentos ruins causados pelas tristezas do amor (era uma sofrência enorme); além disso, alguns dos temas que essa geração trazia era o descontentamento com o mundo e o ar de mistério e terror, chegando em alguns casos até mesmo a trazer o satanismo e elementos infernais e diabólicos como elemento na escrita. A última geração, e uma das mais interessantes de ser analisada, é a condoreira, tendo como principal objetivo a propagação de ideias abolicionistas e denúncia das dificuldades pelas quais passavam os negros escravizados no Brasil. Para a primeira geração já citei dois exemplos acima, mas para a segunda o principal nome com certeza é Álvares de Azevedo, que escreveu em prosa, com uma antologia de contos (Noite na Taverna, publicado postumamente em 1855), em verso (Lira dos Vinte Anos, também póstumo, em 1853) e até mesmo escreveu uma peça teatral (Macário, publicada no mesmo ano de sua antologia de contos). E por fim, a terceira geração tem como principal representante o poeta dos escravos, Castro Alves, que dedicou sua obra à denúncia da situação degradante pela qual passavam os escravizados, desde o momento em que eram colocados nos navios negreiros (escrevendo até mesmo um longo poema somente sobre essa trágica viagem que era imposta aos escravizados) até o momento em que pisavam em solo brasileiro e eram colocados para trabalhar. Com esse resumo feito, vemos que o movimento Romântico no Brasil foi versátil em seus temas, mas acima disso, foi de extrema importância para a construção de uma identidade nacional por meio não só da literatura como também da pintura e outras artes que não citei aqui, mas que vale muito a pena dar uma olhada. Mas porque falei sobre tudo isso?

Achados e perdidos


Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no estado do Maranhão, em 1822 e morreu em 1917 (sim, viveu bastante tempo, o que para a época é mais surpreendente ainda) no município maranhense de Guimarães. Negra e filha de uma escrava alforriada, Maria Firmina foi de extrema importância para a literatura brasileira (mesmo que não tenha recebido o reconhecimento nacional quando em vida) pois foi a primeira mulher a escrever um romance no nosso país; acima disso, a primeira mulher negra, mas as inovações que esse nome carregam não param por aí.

Maria Firmina estava integrada completamente no meio intelectual do Maranhão na sua época, tendo participado de várias antologias poéticas e publicado algumas obras, mas, infelizmente, isso não lhe garantiu um final de vida agradável, tendo morrido pobre e cega na casa de uma ex escrava. Além disso, seu nome acabou por ser esquecido nos anais da literatura brasileira por um longo tempo, só sendo trazida de volta em uma republicação especial para o Maranhão em meados da década de 1970 e só vindo a ser bem mais publicada, em diferentes versões dos mais diferentes tipos, no século XXI. É triste que uma autora tão importante tenha passado tanto tempo no esquecimento, mas que a grande variedade edições de Úrsula, seu único romance, entre outros de seus escritos que atualmente são mais fáceis de encontrar em qualquer livraria nos mostrem que é necessário trazer esses autores antes que suas obras sejam perdidas por completo.

Mais acima citei Machado de Assis ao lado de Maria Firmina dos Reis, mas como esses dois dialogam? Bom, não exatamente há um diálogo, mas é possível fazer uma comparação muito interessante. Ambos os autores são negros e viveram no século XIX, tiveram suas obras publicadas, mas enquanto no caso de Maria Firmina não só a sua obra foi esquecida como também a própria autora caiu no limbo, Machado de Assis teve uma (01, uma unidade [até onde sabemos, pelo menos]) obra perdida/esquecida, só sendo trazida de volta para as livrarias mais de 50 anos depois: estou falando de Casa Velha, publicado como folhetim durante os anos de 1885 e 1886, mas só sendo publicado em livro pela primeira vez no ano de 1943. A partir disso gostaria de levantar alguns pontos para discussão, sendo o primeiro o seguinte: porque obras de autores tão importantes para a nossa literatura se perdem ao longo do tempo? O desinteresse pelo público e crítica literária nacional? Por serem considerados obras menos importantes ou até mesmo pelo autor não ser levado em conta quando se fala do cânone literário brasileiro? Claro que essa última não se aplica de forma alguma ao Machado, mas uma mulher negra ser considerada cânone? Acima disso, uma mulher ser considerada cânone?? Quando pegamos essa lista do cânone, aparentemente inalcançável e inabalável da literatura brasileira, se percebe que a proporção de autoras mulheres é bem menor em relação aos autores homens. E o que falar da Academia Brasileira de Letras então que só veio aceitar a primeira mulher em 1977, com a entrada de Rachel de Queiroz, 80 anos depois de sua fundação? Além disso, não se pode esquecer do descaso pelo qual passou Júlia Lopes de Almeida, que deveria ter entrado quando a ABL foi fundada e que até mesmo participava do grupo que a idealizou e planejou, mas que foi barrada por ser mulher (para manter os parâmetros da Academia Francesa de Letras, a ABL só admitia homens) e no seu lugar foi colocado seu marido, Filinto de Almeida. Bom, o tempo traz o renome e duvido muito alguém se lembrar de Filinto, mas A Falência, romance mais conhecido de Júlia Lopes, integra a lista de leituras para diversos vestibulares atualmente…

É possível comparar o esquecimento de um livro de Machado e da obra de Maria Firmina, mas não é possível dizer que esse esquecimento se dá pelos mesmos motivos. Não se pode negar que o reconhecimento literário nacional é claramente machista e racista, não quer dizer que todos os autores negros são ignorados, temos o caso do próprio Machado, além de Lima Barreto e Cruz e Sousa, mas para um autor negro reconhecido temos outros dez que caíram no esquecimento. Mais do que exaltar a obra desses autores reconhecidos, temos também que buscar trazer de volta os desconhecidos, afinal, não sabemos quantas pérolas se encontram no fundo desse baú empoeirado e rígido que é a literatura brasileira.

Úrsula e outros textos firminianos

Indo (enfim) para a resenha da obra de Maria Firmina, vamos começar discutindo um pouco sobre o seu único romance, Úrsula, publicado no ano de 1859. Nessa obra relativamente curta, mas de um peso enorme, o leitor encontra a sofrida e trágica história de amor de dois jovens no estado do Maranhão: Úrsula, a personagem titular e uma jovem pura, tipicamente uma mocinha do período romântico; e Tancredo, um jovem que foge de casa (yo soy rebelde) após o seu pai se casar com a mulher que ele amava, uma moça que foi cuidada pela mãe de Tancredo e era prometida para o mesmo em casamento, mas que o troca assim que a mãe do rapaz morre. O início do livro não poderia ser mais esteticamente romântico com o narrador descrevendo por páginas e páginas a exuberância da flora maranhense usando termos bastante rebuscados e só depois de um tempo chegando aonde de fato a narrativa começa, com Tancredo caindo exausto, juntamente com o seu cavalo, e sendo resgatado por Túlio, um escravo de uma pequena fazenda próxima de onde o jovem fugitivo estava. Túlio então leva Tancredo até a fazenda de sua dona e lá ele é cuidado pelo escravo e Úrsula, que acaba se apaixonando pelo jovem ao qual lhe conta toda a sua trágica história. Isso ainda nos primeiros capítulos! Foi algo que me pegou muito de surpresa pois eu não sabia qual era o enredo do livro, até mesmo pensava que a protagonista era negra (não é! Maria Firmina foi revolucionária em muitas áreas, mas não foi a primeira a trazer um protagonista negro para a literatura brasileira), então quando o casal já ficou junto logo nas primeiras páginas achei muito estranho, que nem aquele meme de quando o casal tá junto ainda faltando 50 páginas para o livro acabar e você já tá prevendo a desgraça que tá vindo.

Não só a história de Tancredo é trágica como também a de Úrsula e sua mãe inválida, vivendo com pouco dinheiro e sozinhas (sem contar os escravos, lógico) na pequena fazenda e sem opção de poderem mudar de vida. Tal condição veio do próprio tio de Úrsula que nunca aprovou o casamento da irmã com o pai da moça e, após a morte deste último, acabou punindo mãe e filha. Mas não para por aí porque, após Tancredo ter deixado a fazenda para uma breve viagem, o estúpido do cupido acerta uma flecha no coração do tio de Úrsula que se apaixona pela própria sobrinha e decide que vai se casar com ela, por bem ou por mal. Claro que vai ser por mal.

É tragédia atrás de tragédia, sofrimento, muita tristeza, uma típica história do romantismo, mas se fosse só isso seria mais um livro qualquer, no entanto, ele não é. Maria Firmina dos Reis traz em seu romance algo inovador e até afrontoso para a época: o ponto de vista dos escravizados. Há capítulos do ponto de vista deles, além disso, há vários outros capítulos onde a condição da escravidão é criticada pelos personagens de maneira a comover o leitor. A autora cria uma história trágica de romance para assim propagar suas ideias abolicionistas, quase 30 anos antes da Lei Áurea e até mesmo antes de Castro Alves começar a publicar os seus poemas. É uma pena que Úrsula tenha sido esquecido por tanto tempo, afinal, um livro tão importante pode ser fruto de muitas pesquisas e análises, além de servir como inspiração para novos leitores e autores que nem sabiam da sua existência durante as décadas em que o livro ficou esquecido. Para mim, foi uma leitura incrível e que depois eu me julguei demais por não ter lido ele antes, mesmo estando na minha lista de futuras leituras por muito tempo. Uma coisa que me deu conta depois também foi do fato de que ele não foi citado em nenhuma aula do curso de Letras, o qual eu estudo há uns três anos, e ficou aquela pulga atrás da orelha, né, poxa, porque será que eu passei tanto tempo vendo diversos poetas nas aulas e um único romancista romântico, José de Alencar, mas não vi Maria Firmina dos Reis? Grande mistério…

A obra de Maria Firmina, no entanto, não se limita somente a esse romance pois a autora publicou mais alguns outros textos muito interessantes. O primeiro que eu gostaria de pontuar é a novela Gupeva, publicada entre 1861 e 1862, uma história indianista que narra o trágico romance de um francês, Gustão, com a índia Épica. Não foi uma novela que gostei muito, para ser sincero, não entendi sua mensagem, mas achei interessante ver como a autora passeou também pelo indianismo, mostrando como aquele esquema de gerações do qual falei anteriormente não é uma coisa fixa para cada autor. Depois disso li A Escrava, um conto abolicionista bem curto e que vale muito a pena ler onde a autora traz de novo algumas discussões que trouxe em seu romance. E por fim, li Cantos à Beira-Mar, poemas da autora onde ela aborda diversos temas, desde o Maranhão até a guerra a qual o Brasil estava no meio durante aquele período, mas o que mais pegou foi um dos primeiros poemas do livro dedicado à mãe de Maria Firmina. É um poema lindo e comovente que me trouxe de volta até a nota da autora para Úrsula, onde parecia que ela pedia permissão (à sociedade?) para poder publicar seu humilde livro que ela trata como um filho. Se nota uma intrínseca relação entre a autora e a questão da mãe, seja ela a sua própria mãe ou ela mesma como uma, gerando e colocando no mundo seu filho, um livro.

Úrsula eu li na edição da Antofágica, no momento disponível no Kindle Unlimited e Kindle Prime, então fica a dica para caso você assine algum dos dois serviços da Amazon. Ele traz lindas ilustrações e notas que me ajudaram bastante a entender um pouco mais da história já que a linguagem que a autora usa é meio rebuscada, necessitando de um pouquinho mais de esforço para entender o que ela está falando. Já os outros textos da autora eu li em Úrsula e outras obras, um ebook gratuito lançado pela Edições Câmara que contém, além do (agora) famoso romance de Maria Firmina, a novela, o conto e o livro de poemas. É uma ótima edição e muito bonitinha também, então fica a dica de ebook grátis aqui.

Queria muito que a obra de Maria Firmina fosse mais divulgada, eu realmente me encantei já nos primeiros capítulos de Úrsula e é incrível como um livro tão simples me trouxe tantos pensamentos acerca de como funcionam as publicações aqui no Brasil além do que é considerado ou não cânone. São discussões que deveriam ser feitas mais regularmente, seja na internet ou na faculdade (acredite, ela ainda é bem atrasada em alguns aspectos, falo isso por experiência própria), é necessário colocar à prova esse “cânone inalterável”, rever vários autores e obras além de incluir vários outros que são deixados de lado. Se queremos lutar por uma cultura e arte mais pluralizada, e isso eu digo não somente do período contemporâneo, mas também dos séculos passados, é preciso resgatar esses autores esquecidos e entender o porquê de terem sido deixados de lado, torná-los mais publicados e mostrar como foram importantes, muito mais do que vários integrantes de uma certa academia aí.


❧ Úrsula (publicado originalmente em 1859)

❧ Maria Firmina dos Reis

❧ 312 páginas

❧ Editora Antofágica

❧ 5★

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