Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez)

 


Quem é essa gente toda aqui?

Acredito que qualquer pessoa que conheça um pouco de literatura mundial e do século XX já tenha no mínimo ouvido falar de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, mas e quando todo esse engrandecimento (completamente merecido, diga-se de passagem) causa um certo medo no leitor de pegar o livro para ler? Isso já aconteceu comigo várias vezes e devo confessar que continua acontecendo até hoje (tenho um pavor de pegar Dom Quixote para ler, mas no dia que acontecer vai ser O Acontecimento), mas também já me aconteceu o contrário, um entusiasmo de estar pegando um livro tão importante para a literatura que devoro os primeiros capítulos em pouquíssimo tempo. Mas não foi isso que aconteceu com a obra prima do Gabo, na verdade foi uma experiência tão única quanto o livro.

Nós vivemos em cidade

Pode se dizer que Cem Anos de Solidão possui vários protagonistas, o que até complica a maneira como estou escrevendo essa resenha, mas vou tentar dividir em três tópicos distintos: a cidade, as três primeiras gerações e as quatro últimas gerações.

Começando por aquele protagonista que irá acompanhar o leitor durante toda a narrativa (não que de certa forma os outros também não o acompanhem, é complicado, mas voltando), Macondo é uma pequena aldeia fictícia criada pelo autor baseada em Aracataca, localizada na Colômbia, onde Gabo passou boa parte da sua infância. Não é a primeira vez que Macondo aparece em um livro do autor e nem a única: antes disso ela já tinha sido palco dos acontecimentos de A Revoada (O enterro do diabo), a primeira novela publicada de Márquez no ano de 1955, e também foi cenário de alguns contos da antologia Os Funerais da Mamãe Grande, a segunda antologia do autor publicada em 1962, cinco anos antes de Cem Anos de Solidão. Essas duas obras anteriores ao livro tema dessa resenha são livros que eu também já li, esse ano inclusive, mas que não escrevi uma resenha ou mesmo um texto sobre a minha primeira experiência de leitura com o autor porque eu não sabia o que falar sobre. E, sinceramente, ainda não sei dizer nada, além de descrever como complexo. Não foi uma experiência prazerosa, a novela para mim era confusa em várias partes, alguns contos eu não entendi a mensagem, o que só me deu mais medo ainda de não gostar de Cem Anos de Solidão. Inclusive, uma coisa legal de se notar é que algumas histórias contadas por Gabo em Os Funerais da Mamãe Grande são citadas em Cem Anos de Solidão, é o autor criando um micro universo narrativo em que as histórias se referenciam entre si.

Enfim, voltando para Macondo (ou o que restou dela) em Cem Anos de Solidão, o leitor acompanhará o nascimento e a morte da aldeia, desde o momento em que ela foi fundada por José Arcádio Buendía até o dia em que ela é varrida por um vendaval. Um ponto muito relevante que deve ser destacado nesse romance do Gabo é o seu simbolismo, nada que o autor coloca ali, seja o mais simples detalhe, é por acaso, e todas as coisas que acontecem em Macondo não são simplesmente acontecimentos de uma exótica aldeia isolada. Macondo na verdade uma micro representação da Colômbia onde o autor, com uma simples cena, simboliza o ciclo do ouro que foi forte em vários países dessa região do continente, até os sombrios anos em que os militares tomaram o poder (uma coisa que não aconteceu somente no Brasil como também em vários outros países da América Latina e que se torna um grande motivador para que a produção da literatura latino-americana tenha se tornado o que se tornou no século XX). Isso é algo de extrema importância para o leitor que irá desbravar as páginas desse livro pois sem ter conhecimento disso é como se a narrativa não te passasse mensagem alguma. A presença de romanis dentro da história da Colômbia, a Guerra dos Cem Dias (que já tinha sido trazido pelo autor em Ninguém Escreve ao Coronel, de 1961), o Massacre das Bananas, tudo isso é trazido pelo autor em Cem Anos de Solidão de uma maneira simbólica, mas com uma mensagem forte e que sabe atingir o leitor.

Indo agora para as três primeiras gerações, já falei de José Arcádio Buendía e, para melhor facilitar o entendimento dessa resenha, vou colocar abaixo a árvore genealógica dessa família tão peculiar. JAB é o primeiro patriarca e, fugindo do fantasma (não simbológico, é literalmente uma alma penada) de um cara que ele matou, ele parte, junto de vários outros amigos que aparentemente não tinham muito o que fazer, para desbravar as terras inabitadas desse país onde após um bom tempo ele encontra um lugar e lá funda a aldeia de Macondo. Ainda no meio do caminho sua família vai crescendo com o nascimento do seu primeiro filho e, após aldeia ser estabelecida, nasce o seu segundo. Um tema que ronda essas três primeiras gerações é guerra entre os conservadores e liberais, que vai levar até a ditadura militar e que tem como grande herói o coronel Aureliano Buendía, mas ele não é o único pois seu sobrinho, Arcádio, um professor da pequena escola de Macondo que cuida da aldeia após o coronel deixá-la, também é uma peça importante para essa parte da história de Macondo e chega até mesmo a ser fuzilado pelos militares pelo seu envolvimento. Eu não vou poder falar de todos os membros da família pois essa resenha seria enorme, assim como tempo de vida de alguns deles (queria muito saber quantos anos a Úrsula viveu, muito mesmo), então caso queira saber mais, recomendo fortemente que leia o livro.

As últimas quatro gerações já vivem em uma Macondo diferente das três primeiras, uma Macondo já controlada pelo governo militar, que até causa um acontecimento assustador na estação, quem leu sabe do que eu tô falando. É uma aldeia que já passou pelos seus curtos anos dourados e de ascensão, que agora só decai cada vez mais, mesmo com parcas tentativas de crescimento. A principal tentativa é a ida da companhia bananeira (Gabo afirma que o próprio nome da aldeia vem justamente de uma plantação de banana nas proximidades de Aracataca, ele não é inocente e nem bobo), mas que também vai ser um dos principais motivos para o abandono da cidade por parte dos moradores. Entretanto, não é somente a queda da aldeia que o leitor acompanha, mas também da família Buendía: se nas primeira partes do romance acompanhamos a ascensão dos Buendía, juntamente com a ascensão da cidade, mais para a segunda metade acompanhamos a queda desses dois elementos que se mostram tão intrinsecamente ligados que chega a ser sobrenatural.

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E falando no sobrenatural! Cem Anos de Solidão é um dos grandes representativos do realismo mágico na América Latina, se não o mais citado e mais lembrado quando se fala do assunto. Como eu já disse anteriormente, há presença de fantasmas que interagem com os personagens (sim, mais de um, muito mais), mas isso é tratado da maneira mais natural e cotidiana possível pelo autor, o que por vezes chega até mesmo a surpreender o leitor quando do nada ele narra cenas de encontro dos familiares com as almas dos que já morreram. Pessoas que morreram e voltaram à vida, tapetes voadores, todos esses elementos são trazidos de maneira tão comum pelo autor que chega a convencer o leitor de que aquilo de fato possa ser real.

Além disso, outro ponto voltado para o sobrenatural que deve ser pontuado é a repetição, esse ciclo sem com fim que guia os personagens desde antes de nascer. Como você pode notar pela árvore genealógica acima, os nomes se repetem através das gerações, e isso não é por preguiça do autor! Personagens com determinado nome possuem uma característica em comum, enquanto os outros que carregam um outro mesmo nome já possuem outra característica que irá se repetir, esse ciclo que se repete e se repete entre os membros pode chegar a ser confuso para algumas pessoas, até eu pensava que seria algo complicado para mim, mas foi uma coisa que fluiu tão bem quanto a narrativa de Márquez.

A maneira de narrar utilizada por Gabo nesse livro me lembrou muito a maneira que Isabel Allende lança mão em A Casa dos Espíritos, de 1982: muito mais narração, que leva a história a abordar muito tempo em poucas parágrafos, e poucas falas, além de parágrafos enormes que tomam páginas. Sempre que eu pego um livro assim já penso que vai ser uma leitura maçante, mas no caso do livro de Márquez e Allende isso não aconteceu porque eles sabem utilizar a escrita tão bem para envolver o leitor que você é completamente colocado dentro daquela história, sendo tirado totalmente da realidade. Além da maneira de narrar, o livro de Gabo também me lembrou muito A Casa dos Espíritos em questão de tema e objetivo: contar a história de um país se utilizando da história dramática de gerações de uma família envolvida em realismo mágico. Para mim é como se esses dois livros fossem irmãos de pais diferentes, se você leu um e gostou, com certeza vai gostar do outro.

300 páginas de solidão

Sobre a minha própria experiência de leitura, foi uma das mais peculiares que eu tive. Um pouco antes de começar a ler Cem Anos de Solidão, eu já andava pesquisando um pouco sobre Ayn Rand e a estética art déco, então todo esse ar estadunidense dos anos 1920 estava na minha cabeça desde antes. Quando eu já estava mais ou menos na página 100 do livro do Gabo, surgiu uma vontade urgente de reler O Grande Gatsby, tipo, muito urgente, tão grande que me fez ler as 300 páginas que faltavam de Cem Anos de Solidão em um dia para já no dia seguinte eu começar a ler pela segunda vez o livro de Fitzgerald. Sim, isso foi um surto, eu sei, nada saudável, mas aconteceu e ao final do dia parecia que eu tinha levado dois socos e pisoteados por sete bois. Ainda assim, eu não senti como se tivesse apressado demais a leitura ou forçado demais a história para eu terminar logo porque a narrativa é tão fluida, como se alguém tivesse mandado você sentar e ouvir uma história, que mesmo tendo lido muito rápido senti a história me atingindo como deveria.

É um livro incrível, singelo, forte e que precisa ser lido e relido. Não tenho mais nada a dizer sobre porque é um livro que não cabe em palavras (ironicamente), é um livro complexo e que é analisado até hoje pelos seus simbolismos, um livro lindo e feio, sujo e limpo, um livro que vai te atingir de uma maneira que você nunca sentiu antes.


❧ Cem Anos de Solidão (publicado originalmente em 1967)

❧ Gabriel García Márquez

❧ 448 páginas

❧ Editora Record

❧ Tradução de Eric Nepomuceno

❧ 5★

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