Dublinenses (James Joyce)

 


❧ Dublinenses (publicado originalmente em 1914)

❧ James Joyce

❧ 280 páginas

❧ Editora Penguin Companhia

❧ Tradução de Caetano W. Galindo

❧ 4,5★


A velha arte da fofoca

Um dos grandes e mais importantes autores do século XX, o irlandês James Joyce é dono de uma das obras mais interessantes e peculiares da literatura, mas ao mesmo tempo uma das mais complexas e bem trabalhadas. Para a resenha de hoje, vou começar pela base da obra joyciana, seu livro de contos Dublinenses, de 1914, e Epifanias, uma peculiar coletânea de textos escrito por ele durante os anos de 1901 e 1904.

Os ventos da mudança estão soprando…


Antes de falarmos sobre um dos mais importantes livro de contos do século XX, preciso falar um pouco sobre dois pontos que são de vital importância para a discussão de Dublinenses. Primeiramente, no ano de 1801 o Reino Unido da Grã-Bretanha agregou ao seu domínio o reino da Irlanda, após séculos de várias tentativas de dominação sobre eles (não sem resistência por parte dos irlandeses, deixando claro), e essa unificação durou até a segunda década do século XX, quando o caldo começou a engrossar.

O processo de independência não vai ser tratado em Dublinenses já que as histórias se passam antes disso (o “irmão mais novo” entre os contos nascem 1907), mas só para contar um pouco mais sobre essa sangrenta história da Europa: a Irlanda se declarou independente em 1916, mas claro que a Inglaterra não aceitou nem um pouco e isso levou a uma guerra entre os dois países que durou de 1919 até 1921. Dando fim ao conflito, foi assinado o tratado anglo-irlandês em 1921 que ainda deixou a Irlanda sob um certo domínio britânico, mas se tornou uma república independente e sem laços com o Reino Unido após a Segunda Guerra. Entretanto, uma parte da Irlanda continua a pertencer ao domínio britânico, a Irlanda do Norte, o que até hoje ainda é a causa de muitos conflitos naquela região.

Partindo agora para um tema menos mórbido, o modernismo inglês foi um movimento literário que trouxe inúmeras inovação para a literatura mundial. Nomes como Virginia Woolf (uma kinga), D. H. Lawrence (que voltou um pouco aos holofotes recentemente em razão do lançamento da adaptação de seu romance mais famoso, O Amante de Lady Chatterley), George Orwell e Henry James (de origem estadunidense, mas naturalizado britânico) foram grandes nomes da literatura desse período e trouxeram inúmeras novidades, seja nas mensagens que suas obras queriam passar ou pela forma que eram escritas. Joyce também é desse movimento e tinha como objetivo retratar a vida comum da Irlanda, mas como um tema tão aparentemente banal e simples o fez ser um dos maiores nomes do século XX?

Joyce, o vizinho fofoqueiro

Dublinenses se trata de uma coletânea de contos escrito ainda em sua juventude, no início dos 20 anos do autor, onde o autor retrata de maneira singular a vida das diferentes classes sociais dos moradores de Dublin, capital da Irlanda. Enquanto eu pesquisava um pouco mais sobre esse livro, vi que entre os críticos e pesquisadores havia duas formas de ver a escrita de Joyce nessa obra: uma forma Realista, onde o autor se dedica a registrar de maneira quase social-científica a vida daquelas pessoas, e Simbolista, onde o autor esconde pequenas pistas e símbolos em suas narrativas e cabe ao pesquisador se dedicar a entender aquilo, como um fã de Taylor Swift se dedica a entender as pistas que ela deixa em qualquer coisa que ela toque.

Sinceramente, não acredito que seja possível ler Dublinenses usando apenas um viés ou outro, mas sim se utilizando dos dois. Joyce observava a sociedade ao seu redor e se dedicava a retratar ela de forma crua e até irônica, o que para alguns pode deixar os livros sem muita emoção por parte do narrador, mas ele também se importava demais em colocar pequenos elementos para mostrar ao leitor de fora a forma de pensar e agir do povo irlandês, mesmo que ele fizesse isso por meio de uma só palavra. Um tema que permeia boa parte dos contos desse livro é a religião e o conflito entre os protestantes (e aqui lê-se “ingleses”) e católicos, a “verdadeira e antiga religião” como diz uma das personagens de “Os mortos”, conto mais famoso desse livro e por vezes até mesmo publicado de forma separada dos outros. Ok, conflito entre esses dois grupos cristãos que até hoje existe, porque destacar isso é tão importante?

Como eu disse, protestantes em Dublinenses significa “ingleses”, sendo assim o conflito entre esses dois grupos na verdade não se trata de algo religioso, mas sim político. Como também já disse anteriormente, a Irlanda era muito resistente ao domínio britânico durante o seu período de unificação e isso fica muito claro nos contos de Joyce. Vários personagens de Dublinenses falam de outros personagens protestantes de maneira claramente pejorativa, não porque eles seguem um dogma diferente do catolicismo, mas sim pois eles são considerados traidores da própria pátria, aliados aos ingleses. A dominação não se faz somente colocando um novo líder que seja a favor do dominador ou um fantoche, mas também por meio da religião e até da língua. Dublinenses foi escrito em inglês, mas em vários momentos os personagens falam em irlandês ou até mesmo usam o gaélico, uma forma de protesto nada silencioso contra o domínio britânico anglófono.


Para contar essas histórias, Joyce se utilizou de lugares reais e até mesmo se baseou em pessoas reais, o que levou a uma complicada história de publicação já que nenhuma editora queria publicar um livro que fosse causar tanta polêmica entre a sociedade de Dublin. O autor então teve que mudar várias coisas do seu manuscrito até ele estar menos polêmico para ser publicado, levando mais de sete anos desde a escrita do primeiro conto até a primeira impressão. Abordando diversos temas, como religião, política e fases da vida, Dublinenses é um livro para ser apreciado aos poucos, em doses homeopáticas. Você pode ler um conto e não ter entendido a mensagem que ele quis passar de primeira, mas deve entender que talvez não haja uma mensagem. Talvez o objetivo do autor não fosse dizer algo, mas somente retratar algo tão comum e banal que a extraordinária necessidade do registro o torne algo precioso. É confuso, eu sei, mas assim é Joyce. É uma experiência pela qual você passa e que com certeza vai tentar repetir mais de uma vez em sua vida.

Não vou falar muito dos contos aqui, até porque alguns são bem curtos, mas gostaria de destacar os seguintes: “As irmãs”, “Eveline”, “Uma pequena nuvem”, “Dia de hera na sala do comitê”, “Graça” e, o mais famoso, “Os mortos”. Cada conto é singular de sua própria forma, em nenhum momento senti que um se parecia com o outro na forma de tratar do seu tema principal, portanto não senti que nenhum conto era desnecessário, o que é algo muito importante para mim quando leio uma coletânea de contos. Falando um pouco da edição, tenho que louvar a Penguin Companhia de joelhos. Sempre ouvi falar muito da tradução de Caetano Galindo e de como era um dos maiores tradutores atualmente, mas só agora entendo o porquê disso. Desde a sua nota de abertura até às notas de rodapé, os comentários de Caetano e o seu trabalho em retratar a escrita coloquial de Joyce nas falas dos personagens mostram o apreço e o carinho que ele tem por essa obra. Uma certeza que tenho nesse momento é de que qualquer livro do Joyce que seja, devo ler na tradução de Galindo (não vejo a hora de sair Finnegans Wake na tradução dele!!!!). A edição da Penguin conta ainda com “O velho vigia”, um conto de Berkeley Campbell que teria influenciado Joyce a escrever “As irmãs”, uma ótima adição à edição.

Notas de um jovem estranho


Já um livro não tão conhecido de Joyce é Epifanias, pequenas e rápidas anotações do autor feitas pelo autor durante os anos de 1901 e 1904 sem muito contexto ou até mesmo conteúdo. Tendo escrito por volta de 70 “epifanias”, somente 40 chegaram até os dias de hoje e foram coletadas neste breve e lindo livro publicado pela editora Autêntica. Algumas foram reaproveitadas pelo autor em seus romances: Stephen Herói, Um Retrato do Artista Quando Jovem, Ulysses e Finnegans Wake. Li essa coletânea mais por curiosidade, sem muito comprometimento com o ato de compreender o que o autor quis passar, até mesmo porque não é muito o que dizer, mas sentir. Ainda assim, foi uma leitura rápida e gostosinha, pude exercitar um pouco o meu inglês já que a edição da Autêntica é bilíngue e também ver lindas fotografias de Dublin nos anos 1940. A edição ainda conta com dois posfácios que melhor explicam as epifanias de Joyce e as relacionam com seus romances, mas, sinceramente, não li porque tanto não me interessava quanto também não faria muito sentido para mim já que ainda não li os romances.

Essa leitura de Dublinenses na verdade foi minha segunda tentativa com o autor, há um tempo atrás li “Os mortos” em uma edição separada, também da Autêntica, e não entendi muito, então não levei adiante. Mas agora, sabendo mais sobre o que trata não somente esse livro de Joyce, mas sua obra, consigo entender mais da realidade que ele busca retratar. Até o final do ano desejo ler ainda Exílios e poemas, uma peça teatral e coletânea dos poemas do autor, e Um retrato do artista quando jovem, todos na belíssima tradução de Galindo e que espero muito que me encante ainda mais.



James Joyce nasceu em Dublin, em 1882. Era o mais velho dos dez filhos de uma família que, após uma breve prosperidade, caiu na pobreza. Depois do começo da Segunda Guerra Mundial, foi morar na França ainda não ocupada e, em dezembro de 1940, conseguiu uma permissão para morar em Zurique, onde morreu em 1941.

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