Escândalo (Shusaku Endo)


 

❧ Escândalo (publicado originalmente em 1986)

❧ Shusaku Endo

❧ 256 páginas

❧ Editora Planeta, pelo selo Tusquets

❧ Tradução de Mário Vilela e Aline Sorto Pereira

❧ 4★





Que tipo de espelho negro é esse?

Sempre me interessei muito pela cultura japonesa, não somente animes e mangás, mas também a literatura japonesa e tudo aquilo que não nos ensinam nas escolas. Mas infelizmente, e isso é um defeito que preciso corrigir urgentemente, poucas vezes parei para ler um livro japonês, por mais que a minha lista no Skoob tenha uma parte separada só para eles. Pois eis que eu fui no shopping, lindo e pleno, vou na parte de livros baratinhos e me deparo com Escândalo, de Shusaku Endo, um autor que eu já sabia ser muito conhecido e que teve um filme adaptado para o cinema por Martin Scorsese. Poxa, um autor japonês, baratinho, não tinha como eu não levar né?

Depois da rosa

A literatura japonesa do pós-guerra é marcada por diversos temas e autores muito importantes, é complicado dizer que há uma característica em comum nas obras desse período pois a pluralidade de vozes e formas de ver o mundo a torna uma literatura vasta, um novo mundo a ser descoberto. Entre os grandes nomes, se pode destacar Osamu Dazai, autor de O Declínio de um Homem, e Kenzaburo Oe, que possui algumas de suas obras publicadas aqui no Brasil. Gostaria de ter pesquisado um pouco mais sobre esse tema para falar mais sobre aqui, mas infelizmente não há muita coisa sobre a literatura japonesa do século XX em português e mesmo o que se tem sobre em inglês ainda é meio raso. Entretanto, sobre Endo se pode dizer que ele faz parte da Terceira Geração do pós-guerra, uma geração de grande importância para a literatura japonesa pois após ela começou a surgir vários outros grandes nomes da cultura japonesa e que foram exportados para outros países. As próprias obras de Endo foram traduzidas para várias outras línguas e o autor foi muito comparado a Graham Greene, grande nome da literatura inglesa do século XX.

Outro importante ponto a ser citado antes de falarmos sobre Escândalo é a questão do I-novel, um tipo de romance onde os acontecimentos narrados coincidem com acontecimentos da vida do autor. Pode ser facilmente confundido com a auto ficção (e sinceramente, ainda não sei bem qual a diferença entre os dois), mas acredito que a distinção entre uma e outra se encontra justamente na sua origem: “auto ficção” é um termo cunhado em na década de 1970 e muito relacionado aos autores franceses contemporâneos; já o I-novel surge lá no início do século XX, com Toson Shimazaki e Katai Tayama, sendo portanto um estilo intrinsecamente japonês. Enquanto eu pesquisava um pouco mais sobre esse estilo de livro li que o leitor deveria considerar o autor e narrador como uma só entidade, já que o narrador (normalmente sendo em primeira pessoa) é uma manifestação quase idêntica ao autor, mas devo discordar desse posicionamento. Em qualquer gênero ficcional que seja, o autor e o narrador devem ser entidades separadas, o narrador é somente uma manifestação mental e pontual do autor em um determinado momento de sua vida, uma entidade que vai ser entendida de diferentes formas, que vai ser vista de diferentes maneiras e que mesmo pessoas próximas ao autor podem não reconhecê-lo ali. Para saber um pouco mais sobre o I-novel, vou deixar linkado um vídeo do canal Quadrinhos na Sarjeta que pode explicar um pouco melhor esse gênero abordando também o mangá.

Versão japonesa de O Clone?

Publicado em 1986, quando o autor já tinha por volta dos seus 60 anos, Escândalo conta a história e um famoso autor japonês (uma certa “versão espelhada” de Endo) que acaba de receber mais um prêmio por um livro recém publicado. Tudo vai indo bem, tirando o terror que a velhice lhe causa, até que na festa da premiação uma jovem mulher que ele não conhece diz estar ali por ele ter convidado ela. Não só isso, mas ter convidado ela em um lugar que com certeza não seria de bom tom um senhor de 60 anos, que muito fala sobre ser cristão, estar! A partir disso, Suguro, nosso protagonista, caminha (ou desce, despenca talvez seja ainda mais apropriado) em uma espiral confusa e misteriosa sobre si mesmo. Melhor, sobre quem ele não quer ser, mas no fundo é.

Suguro é um homem culto, casado com uma boa esposa, cristão e que sempre coloca em suas obras as questões sobre ser cristão em um país onde boa parte não é. Entretanto, ele tem um duplo o qual desconhece a sua natureza, mas o teme por saber que é o completo oposto da sua. Ou pelo menos da natureza que ele aparenta ter para a sociedade. Escândalo é um livro que fala sobre manifestações, do inconsciente e do consciente, sobre como as pessoas possuem um lado oposto daquilo que aparentam para a sociedade e que preferem esconder. Claro, não é um livro somente sobre isso, é algo muito mais complexo, mas para falar sobre tudo eu teria que estudar mais sobre as teorias do inconsciente que Freud trouxe e como elas se mostram nesse livro. Entretanto, uma coisa que se pode falar sobre, e que está presente na introdução assinada por Damian Flanagan, é como as atuais formas de se comunicar para a sociedade deixaram mais aparentes o nosso lado mais sujo.

Enquanto no romance de Endo o lado sombrio de uma pessoa fica escondido em casa, em um cômodo, normalmente o próprio quarto, atualmente ele se esconde atrás de uma tela. É muito simples falar de alguém, dar sua opinião, ser agressivo em redes sociais, mas é como aquele meme: se eu deslogar do Twitter, esse problema continuará existindo? Todos possuímos nossos dúplices, todos possuem um lado sombrio, somos fragmentados em cinquenta tons de cinza, mas o que acontece quando tentamos apagar esse lado mais sombrio? Outro ponto que deve ser destacado é como o livro me pareceu muito uma resposta do autor à própria indústria editorial, com o autor trazendo a metalinguagem da escrita de um romance, o processo de premiar uma outra história, a maneira como a mídia fica em cima de um autor, entre outras questões que envolvem a própria vida de Endo como escritor. Escândalo é um romance que te deixa cheio de perguntas e não te dá nenhuma resposta, seja sobre os próprios temas que ele aborda ou pela narrativa, que, devo confessar, não me agradou muito no final. Entretanto, me deixou muito curioso para saber mais sobre o autor e ler outros livros dele publicados aqui no Brasil. O selo Tusquets, trazido por aqui pela editora Planeta de Livros, publicou ainda os romances Silêncio e O Samurai, leituras que espero fazer ainda esse ano.



Nascido em Tóquio, Shusaku Endo (1923-1996) apresenta em sua obra a perspectiva peculiar de japonês e católico praticante. Após o fim da Segunda Guerra, decidiu continuar seus estudos no Ocidente. Na França, sofreu forte discriminação racial. Teve depressão, contraiu tuberculose e ficou no hospital por meses. Acreditando que o cristianismo havia precipitado sua doença, colocou sua fé em dúvida. Antes de voltar para o Japão, foi para a Palestina realizar pesquisas, o que transformou a sua percepção do cristianismo, levando-o à conclusão de que Jesus também havia conhecido a rejeição. De volta ao Japão, passou a explorar em sua obra os dilemas entre Ocidente e Oriente, fé e descrença, tradição e modernidade. Publicou também estudos teológicos, ensaios, peças de teatro e filmes.

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