À Espera de um Milagre (Stephen King)
A Grande Decepção de 1932
Existem aquelas histórias que só de ouvir/ver o título você já sabe que é algo extremamente comovente para muitas pessoas, que levou multidões às lágrimas e que é reverenciada com uma das melhores já contadas, seja na literatura ou no cinema. Após tanto ver a chamada do filme À Espera de um Milagre no SBT, eu meio que cresci com esse pensamento de que era uma história muito pesada e não me interessei nem um pouco em assistir; mas isso mudou quando descobri que na verdade esse filme é baseado em um livro do meu autor favorito, Stephen King. Ainda assim, precisei de um tempo para me sentir pronto e preparado para ler esse livro, até que o dia chegou, esse fatídico dia…
Que depressão o que, more, ela já superou isso
À Espera de um Milagre é um título que chama a atenção do leitor/espectador, só de ouvir já parece uma história emocionante de superação a qual terá um final tocante e que te fará chorar. Para alguns, foi exatamente isso que essa história causou, conhecida como uma das melhores do autor e mais tocantes! Eis a minha surpresa quando termino de ler o livro e descubro que foi um dos piores livros que já li do autor.
Narrada em primeira pessoa por Paul Edgecombe, já bem velho e morando em um retiro para idosos, o protagonista irá contar a sua história de quando trabalhava como chefe dos guardas em uma prisão no sul dos Estados Unidos, localizando a história no ano de 1932. Ele trabalhava no Bloco E, no corredor da morte, onde ficam os detentos sentenciados à execução na cadeira elétrica, então já nesse início você percebe que não vai ser uma história nem um pouco leve: período da Grande Depressão, presos que cometeram crimes horríveis e que logo logo irão morrer, tudo isso se passando em um local remoto e sombrio. A partir disso o leitor irá acompanhar a passagem de alguns presos, entre eles três se destacam: Eduard Delacroix, um cara meio afrancesado que leva tudo com uma certa leveza, como se ainda fosse sair vivo daquele lugar; William Wharton, um psicopata típico dos livros do King; e o mais importante, John Coffey, um cara negro imenso, mas que é “manso”, com uma mentalidade quase infantil. Além disso, há ainda os colegas de Paul, entre eles se deve destacar Percy Wetmore, um jovem rebelde e sem escrúpulos, que só está ali para ter o prazer de ver e liderar a morte de uma pessoa, que se aproveita dos seus contatos poderosos para conquistar o que deseja. Um filho da puta típico dos livros do King. Claro que os seus colegas não gostam nem um pouco dele, mas se reclamarem vão ser postos para fora por algum contato de Percy, e estar desempregado durante a Grande Depressão não parece ser uma coisa muito boa.
Dos mais de vinte livros que já li do autor, esse foi um dos mais peculiares e particulares pela forma em que é narrado. Primeiro, com Paul já bem idoso e escrevendo ele próprio sua história, a linha do tempo é por vezes confusa para o próprio narrador, tendo momentos em que ele precisa parar para pensar o que aconteceu antes ou depois do que ele está contando. Além disso, a narrativa não é linear cronologicamente, em alguns momentos ele adianta o que aconteceu em meses, depois ele volta meses ou semanas, não é um livro tão simples como os outros do King. No início isso acabou me deixando um pouco confuso, mas ao mesmo tempo ele te deixa um pouco ansioso para o que vai acontecer já que o próprio dá spoilers do que está vindo. É um livro com ritmo próprio, mas que me lembrou bastante Joyland e Revival, ambos também do Stephen King, que pegam essa estrutura de narrador personagem que se encontra bem avançado em sua idade e volta ao passado para contar a sua história. A diferença desses dois livros para À Espera de um Milagre é que eles dois são bons.
Estou seguindo a Jesus Cristo
A partir daqui vou comentar alguns spoilers, então caso não queira saber sobre o que irá acontecer com os personagens, não recomendo que continue lendo, esteja avisado!
Paul, em 1932, está com uma infecção urinária que o atormenta há algum tempo, mas se recusa a ir a um médico. Eis então que John Coffey o chama para uma conversa de sua cela (uma característica desse pavilhão é que os guardas “se tornam próximos” dos detentos, acredito que para melhor aliviá-los desse período tenso que é estar no corredor da morte) e de uma hora para a outra ele coloca a mão na região pélvica de Paul, que o pega de surpresa, mas depois fica mais surpreso ainda com o que esse gesto de John causou: esse negro enorme e estranho que fica chorando o tempo todo na cela, que foi preso por estuprar e matar duas meninas, simplesmente o curou da sua infecção. Esse não vai ser o único milagre que Coffey fará durante a história, ele também salva o pequeno Sr. Guizos, o ratinho de estimação de Delacroix que faz truques encantadores, que estava à beira da morte após ser pisado por Percy. Mas o feito mais chocante de John é o que ele faz com a esposa do diretor da prisão, a qual estava morrendo em razão de um tumor inoperável no cérebro.
Antes disso, é dito que ela estava falando palavrões do nada nas frases mais cotidianas, algo causado provavelmente por causa do tumor que afetava, entre outras funções corporais, a fala da mulher. Quando eu li isso, além de algumas das falas da personagem, logo me lembrei de O Exorcista, quando a pequena Regan muda por completo de personalidade, se tornando mais agressiva e hostil, falando palavrões inclusive. John Coffey então é retirado da sua cela às escondidas pelos guardas para salvar a esposa do diretor e essa cena da cura é bizarra, completamente bizarra.
A alusão ao ritual de exorcismo é mais do que óbvio, o próprio Paul até fala que esse acontecimento lhe lembrou justamente isso (aqui o King parece deixar mastigado para o leitor a sensação que ele quer passar, algo que falarei mais adiante); John então suga o “mal” que estava em Melinda e o guarda dentro de si, o que o deixa com uma aparência de doente que está para vomitar a qualquer momento. Todos esses “milagres” simplesmente não tem uma origem ou explicação, assim como o próprio John Coffey, o que às vezes é uma característica dos livros do autor, o sobrenatural apresentado por King não precisa ter uma origem em todos os livros, o leitor só precisa saber que ele está ali. Ainda assim, o fato de John Coffey ser um personagem sem origem alguma, um personagem na verdade raso, me incomoda bastante.
Primeiro, como eu já disse, ele não tem origem alguma, só é suposto que ele andava por aí como um nômade trabalhando em algumas fazendas e que seu poder é uma dádiva de Deus. Além disso, ele não possui uma personalidade que de fato o apresente como um personagem bem construído, ele só é um cara com uma mentalidade infantil que tenta ajudar as pessoas que ele encontra pelo meio do caminho. Até mais ou menos 60 ou 70% da história ele é muito pouco presente, o que até me fazia questionar sobre quando ele se tornaria o foco narrativo, tendo poucas falas, algumas bastante repetidas e sendo muito mais um elemento narrativo que ganha força ao final do que de fato um personagem importante. Inclusive, esse é um ponto que me incomodou depois que terminei a leitura e fiquei remoendo a história dentro de mim: John Coffey é unicamente um elemento, um objeto. Ele é usado para curar Melinda, ele é o objeto que muda a visão de mundo de Paul, ele é um símbolo de injustiça e divindade concedida a alguém, mas ele não é uma pessoa. Um personagem negro completamente estereotipado e que é somente um objeto utilizado por personagens brancos.
E como falar de estereótipo sem citar o problema do negro mágico? Na resenha de A Dança da Morte eu falei sobre a questão do magical negro com a personagem da Mãe Abagail e como a representação negra naquele livro era algo completamente problemática. Depois dele, eu também li outro livro do autor que também conta com esse elemento, O Iluminado, que tem como personagem Dick Hallorann, um cara negro que também é iluminado, assim como pequeno Danny, e que servirá de mentor para que o protagonista entenda melhor seus poderes. Sinceramente, eu não esperava que fosse encontrar outros magical negros em outros livros do autor, o que atrasou o caimento da ficha na minha cabeça de que John Coffey era outro personagem que se enquadra nesse estereótipo que precisa ser mais discutido aqui no Brasil. O estereótipo do personagem no entanto não para na sua questão mística pois o repetido (e repetido muitas vezes, diga-se de passagem) fato de que ele é enorme é outra característica atribuída à homens negros nos Estados Unidos; e além disso o autor ainda se utiliza daquele arquétipo de personagem enorme, mas completamente dócil, sendo tratado não como uma pessoa, mas como um animal ou simplesmente um objeto animado, que anda, respira e fala. Tudo isso colabora para que o personagem de John Coffey não seja visto como uma pessoa ou mesmo humano, ele é um objeto rodeado de misticidade e mistério, mas que é facilmente controlado pelos guardas da prisão. Para quem quer saber um pouco mais sobre as questões problemáticas envolvendo o negro mágico, fica linkado abaixo algumas matérias sobre o tema e que eu realmente espero que seja mais discutido no Brasil, especialmente em cima das obras do King pois poucas vezes eu vi essa questão sendo abordada.
E por fim, um último ponto sobre o personagem que eu gostaria de comentar, é a relação entre John Coffey e Jesus Cristo. O próprio King, na introdução do livro, afirma que mudou o nome original do personagem, Luke Coffey, para John afim de fazer uma alusão à Cristo, assim como William Faulkner fez com Joe Christmas, do romance Luz em Agosto, de 1932. Com isso na cabeça, tentei ver algumas outras alusões que o autor poderia fazer durante a narrativa, mas a única que eu achei que poderia fazer sentido era a de que os outros dois detentos fossem também os outros dois crucificados ao lado de Jesus no Calvário. É só isso mesmo, não tem muito mais o que comentar sobre, o que, para mim, mostra um outro ponto que o autor poderia ter melhor trabalhado, mas que desperdiçou.
Se fosse uma peça de louça, seria um pires
Ao final da história, quando John Coffey é executado e ele diz que, por ele, está tudo bem que isso aconteça pois não aguenta mais os males do mundo, isso tudo após os guardas entenderem que ele não foi o verdadeiro assassino daquelas meninas (algo óbvio para o leitor desde o início, mas tudo bem) e que o verdadeiro culpado estava (olha só que coincidência) bem ali há poucas celas de distância, eu não sabia direito o que pensar, mas sabia que havia algo de errado ali. Depois disso fui pesquisar algumas análises sobre a obra, visando mais uma perspectiva racial, e a seguinte definição foi a que melhor esclareceu as coisas para mim e melhor traduziu o que eu sentia: aquele final era um pedido de desculpas do autor por ser branco. Ele podia ter se aprofundado mais sobre os problemas carcerários, mas para esse tema ele só reservou uma frase onde dizia que era absurdo pessoas punirem as outras com eletricidade ou gás, mas foram parágrafos e mais parágrafos onde o único personagem negro desculpa os personagens brancos por fazerem aquilo com ele, onde ele afirma que estava tudo bem com isso e ainda pede perdão por ser quem é. Quando cheguei ao final da leitura fiquei me perguntando sobre qual era a mensagem, mas depois de muito ler a respeito e refletir cheguei na conclusão de que é só isso mesmo, o autor dizendo “ei, pessoas negras, vemos que vocês sofrem e sinto muito por isso, agora olhem só que comovente essa história”. Personagens rasos em uma história rasa com uma mensagem rasa.
Não só o personagem de Coffey é raso como também o seu colega, Delacroix. É dito que ele foi preso por matar algumas pessoas e depois colocar fogo no local para encobrir o seu crime, mas isso é tudo que o autor aborda sobre um personagem que não é de forma alguma sem importância para a história, pelo contrário, ele será o foco narrativo por boa parte do romance. Entretanto, o seu passado não é tratado, seu crime é deixado de lado e ele é só um personagem carismático que está ali e que será morto em algum momento, mesmo que ele ainda acredite que sairá de lá com vida. Wharton é só um psicopata que me lembra vários que já vi em outros livros do autor, sem nada que o diferencie de um psicopata qualquer. Os guardas se diferenciam pelos nomes e por um ser mais engraçadinho que o outro, menos Percy. Até mesmo a forma como o contexto da Grande Depressão é inserido na história me pareceu raso, sem muita importância e só sendo um pano de fundo para localizar a narrativa em um período onde um acontecimento importante, como alguma das Grandes Guerras ou a tensão da Guerra Fria, não interferisse na história. O medo do desemprego? Isso sempre existiu, ainda existe na verdade, então se eu localizasse essa narrativa em outro período do século XX em que um grande acontecimento mundial não estivesse abalando as estruturas do país, ainda funcionaria da mesma forma?
Acho que já li isso…
Falando agora sobre a escrita do livro, uma coisa sobre o processo de publicação de À Espera de um Milagre que deve ser dita antes é que essa história foi publicada de forma serializada em seis partes, cada uma sendo lançada em um mês. A partir da segunda parte (no formato de livro único cada parte é demarcada), o narrador precisa fazer uma recapitulação do que aconteceu na anterior, o que faz sentido em uma publicação seriada, mas que em livro único fica extremamente maçante. Primeiro porque o primeiro capítulo de cada parte não começa de onde o último da parte anterior acabou pois Paul fica contando da sua vida no asilo, dos problemas que ele passa com um dos cuidadores, de um novo amor, tudo isso eu achei extremamente descartável e só queria que ele voltasse para a sua história no ano de 1932. Mas, além da sua vida no presente, ele ainda precisa recapitular tudo o que aconteceu e eu tinha que ler de novo coisas que eu tinha acabado de ler, literalmente era só voltar duas páginas que estava bem ali tudo o que ele estava falando. Como eu disse, para o formato de série que vai sendo lançada durante meses faz sentido essa recapitulação, mas para o formato de livro único não funciona e só deixa uma leitura, que já é maçante, mais complicada ainda. A solução poderia ser alterar o texto quando o livro é reeditado em formato único? A meu ver, sim, não iria mudar em nada na história e o próprio autor já fez isso antes, de mudar algumas coisas no texto original na hora de reeditar algum livro para o relançamento, o próprio Dança da Morte passou por esse processo.
Outro motivo para a leitura de À Espera de um Milagre ser maçante é o seu detalhismo. O narrador não poupa palavras em descrever situações, expressões faciais, o clima que perdurava no momento, é cansativo ler tudo isso. Talvez ele quisesse realmente causar desconforto no leitor, especialmente naquela cena em que Delacroix morre de uma maneira horrenda? Não duvido nem um pouco, mas em vários momentos é simplesmente desnecessário tanto detalhismo, é maçante, não agrega em nada na narrativa.
Lamentável, de verdade 9inha
Em conclusão porque não quero mais saber desse livro, foi uma grande decepção, eu poderia mudar o nome Grande Depressão para Grande Decepção só por causa dessa história. Reconheço, além de ser um fato conhecido por muitos, que o Stephen King tinha um grande problema na representação de personagens negros antigamente, não sei se isso ainda se mantém já que não li muito dos livros mais recentes do autor, mas não me surpreenderia se encontrasse um ou mais problemas ali em relação a isso.
Como o livro não foi tortura o suficiente, assim que acabei fui correndo assistir ao filme de 1999, afinal é a versão mais conhecida dessa história, nomeado à quatro categorias no Oscar. Dirigido por Frank Darabond, que já tinha trabalhado com outra obra do autor (Um Sonho de Liberdade, baseado na novela Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank, presente no livro Quatro Estações) e que posteriormente também adaptou a novela O Nevoeiro, presente em Tripulação de Esqueletos, para o filme de mesmo nome, esse é um filme bem conhecido e que logo se tornou altamente aclamado. Como segue bem a narrativa do livro, cortando pouca coisa, eu também não gostei do filme, mas não posso negar que é bem produzido. Ainda assim, a história é rasa e com uma mensagem bem duvidosa, assim como o livro.
❧ Negro mágico: a marca do racismo velado no cinema
❧ Hanks for Nothing, Tom!: The Green Mile
❧ À Espera de um Milagre (publicado originalmente em 1996)
❧ Stephen King
❧ 400 páginas
❧ Editora Suma
❧ Tradução de M. H. Côrtes
❧ 1★




Comentários
Postar um comentário